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domingo, 15 de dezembro de 2013






     







              
Padre Luís Corrêa Lima

                

A SHOÁ E A IGREJA CATÓLICA
           

A Shoá, a maior tragédia sofrida pelo povo judeu em toda a sua história, tem conseqüências para toda a humanidade. A história revela o que o ser humano é e do que ele é capaz. Pensar na Shoá é voltar-se para a dimensão mais obscura e terrível da existência humana e ver que o ser humano foi capaz de produzir uma tragédia tão grande que nos faltam palavras suficientes para expressar o seu horror. O mundo não é mais o mesmo antes e depois da Shoá. A presença do mal é de tal maneira sufocante que muitos se recusam a aceitar um sentido para a vida. Um sobrevivente declarou que a "Europa se tornou um lago de sangue judeu congelado. No continente de Beethoven, de Goethe e da Revolução Francesa, as idéias de humanismo, cristianismo e racionalismo e os frutos da Revolução Francesa foram terrivelmente despedaçados. Muitos cristãos transformaram suas cruzes em suásticas".

A consciência cristã se depara com duas constelações de problemas:
1) Como falar de Deus depois de Auschwitz? É o problema do sentido da existência humana. Como anunciar um Deus onipotente e bom diante de uma catástrofe sem precedentes?
2) Como é possível que esta tragédia tenha ocorrido na Europa, em países de longa tradição cristã? E até que ponto esta tradição favoreceu o surgimento do anti-semitismo, do nazismo e de regimes que a ele se aliaram? Que papel desempenharam os cristãos e suas igrejas naqueles acontecimentos?

O cinqüentenário do final da Segunda Guerra Mundial e o final do segundo milênio da era cristã têm trazido muitas interrogações e reflexões. Não se trata de julgar o passado à luz do presente sem levar em conta as circunstâncias e a mentalidade da época, nem mesmo de querer avaliar a consciência dos que então viviam. Trata-se de analisar as ações e suas conseqüências, para que o passado não seja recalcado e a consciência moral não seja obscurecida.
Na Igreja Católica há um clima de autocrítica institucional, estimulado pelo próprio Papa João Paulo II, que fez surgir três importantes pronunciamentos: uma carta pastoral dos bispos alemães, em 1995; uma declaração de arrependimento dos bispos franceses das regiões onde houve campos de concentração de judeus, em 1997; e um documento do Vaticano, da Comissão para as Relações Religiosas com o Judaísmo, em 1998, entitulado: We Remember, a reflexion on the Shoá (Nós Recordamos, uma reflexão sobre a Shoá).
Este último teve ampla repercussão na imprensa em todo o mundo. Infelizmente os grandes jornais brasileiros não o publicaram na íntegra.

A consciência cristã tem realizado um intenso processo de revisão das suas relações com o judaísmo, que são ricas e complexas. Jesus Cristo era judeu. Um autêntico judeu do primeiro século, bem como seus pais e seus apóstolos. Parte das Escrituras cristãs tem um alto conceito do judaísmo. No entanto, logo nas primeiras gerações cristãs houve uma intensa polêmica com o mundo judaico, que levou a fortes rupturas, sobretudo depois da destruição do Templo de Jerusalém, por volta do ano 70 A.D. O resultado foi que uma outra parte das Escrituras cristãs traz uma imagem bastante negativa do judaísmo. No Evangelho de Mateus há uma culpa coletiva e hereditária do povo judeu pela crucificação de Jesus, e no Evangelho de João os inimigos de Jesus são freqüentemente nomeados "os judeus". Esta ambigüidade marcou a teologia cristã e a vida da Igreja nos séculos subseqüentes.
No século IV a religião cristã se tomou religião oficial do Império Romano, dando início a uma forma hegemônica de presença do cristianismo na sociedade: a cristandade. Os outros grupos religiosos, incluindo os judeus, foram subjugados. Daí nasceram leis discriminatórias que vigoraram na Idade Média e também na Idade Moderna, e só tiveram fim com o advento da sociedade liberal, a partir da Revolução Francesa.
A cristandade européia tem uma tradição de mil e quinhentos anos de intenso sentimento antijudaico. Foi neste terreno que cresceu a planta venenosa do anti-semitismo, que depois foi assumida e alimentada pelo nazismo.
É fato que a Igreja Católica chegou a condenar o anti-semitismo em 1928, no tempo do Papa Pio XI, bem como o nazismo, em 1937. No entanto, a força dos regimes totalitários nos anos 30 era avassaladora e a inércia da tradição antijudaica era enorme, de modo que não foi possível evitar os desdobramentos trágicos da Segunda Guerra.
Muitos cristãos reagiram ao nazismo e se solidarizaram com os judeus perseguidos. Dentre os mortos dos campos de concentração, além dos seis milhões de judeus, há cinco milhões de não-judeus, cuja maioria são poloneses e opositores do nazismo. Entre os não-judeus, seis mil sacerdotes católicos e outros cristãos opositores do regime foram mortos. Entretanto, muitos outros apoiaram o nazismo ou foram indiferentes à sorte dos judeus.
Durante a guerra, o Papa Pio XII teve um papel que por um lado é louvável, mas por outro é controvertido. Ele empreendeu uma ampla ação diplomática em favor dos judeus perseguidos e incentivou as instituições da Igreja a escondê-los e a favorecerem sua fuga. No entanto, temendo represálias dos nazistas, evitou fazer uma condenação pública do anti-semitismo e das perseguições violentas. Calcula-se que os fiéis e o clero ajudaram a salvar mais de setecentos mil judeus. Há quem diga que uma condenação pública do papa poderia ter reduzido em muito a extensão da tragédia. Outros sustentam que as represálias do terror totalitário tornariam a tragédia ainda pior. Este tema é bastante controvertido. Uma coisa é certa: Pio XII agiu com reta intenção e empregou todas as suas energias.
Depois da guerra, num mundo chocado e consternado pela Shoá, vários cristãos e judeus assumiram com muita seriedade a tarefa de reaproximação e de desmantelamento do anti-semitismo cristão. Foram criadas as Fraternidades Cristão-Judaicas. Realizaram-se congressos internacionais. A catequese e a pregação cristãs começaram a ser revistas.
Quando os bispos católicos de todo o mundo (quase três mil) se reuniram para o Concílio Vaticano II (1962-65), um dos temas tratados foi a relação com o judaísmo. No decreto Nostra Aetate, que aborda o assunto, é definitivamente refutada a culpa coletiva dos judeus pela morte de Jesus. Não se pode culpar todos os judeus que viviam naquele tempo pela sua morte, nem mesmo os judeus de todos os tempos. Não se deve mais apresentá-los na pregação cristã como um povo amaldiçoado por Deus. Reconhecem os bispos que cristãos e judeus têm um grande patrimônio espiritual comum e recomendam o mútuo conhecimento e apreço.
Estas novas diretrizes, entretanto, levam um bom tempo para serem assimiladas. Trata-se de sentimentos muito arraigados, que não são facilmente removíveis. O Papa João Paulo II teve importantes iniciativas nesta linha entre elas: visitou Auschwitz, visitou a Sinagoga de Roma, tornando-se o primeiro papa da história a visitar uma sinagoga, reconheceu o Estado de Israel, teve inúmeros encontros com os judeus e recentemente convocou um grupo de especialistas para tratar das raízes do antijudaísmo em ambiente cristão.
O Documento We Remember dá passos importantes: trata especificamente da Shoá, exorta sobre o dever de memória do extermínio e, sendo um pronunciamento do Vaticano, atinge toda a Igreja Católica. Entretanto, algumas de suas afirmações são bastante tímidas e certas questões ficam de fora. Os bispos franceses e alemães avançaram muito mais.
Fazendo um balanço, vemos que as relações cristão-judaicas avançaram muito. Ambos ganham muito com isso. Não há mais o risco de um retorno ao passado, à cristandade antijudaica. Cremos que ainda é possível falar de Deus depois de Auschwitz. Aprendemos com o povo judeu que o Senhor é fiel às suas promessas e que a morte do justo não é em vão. A Shoá e a desolação não hão de ser as últimas palavras da história humana mas sim o mundo renovado que tanto desejamos.

Padre Luís Corrêa Lima é sacerdote católico, da Companhia de Jesus, historiador e membro da Fraternidade Cristão-Judaica.
Enviado por Leon M.Mayer
Presidente da Loja Albert Einstein da 
B'nai B'rith do RJ


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