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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A natureza não conhece fronteiras

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por Rafael Stern
Depois de terminar meus estudos de graduação em geografia, estava procurando uma forma de ir para Israel e seguir trabalhando na área ambiental. Tive a oportunidade de ser madrich do Taglit, e trocando ideias com o guia do meu grupo sobre meus planos futuros, ele disse: “cara, vai conhecer o Machon Aravá. As pessoas de lá não são pessoas, são anjos. E eles estão salvando o mundo.”
aravaUm ano depois eu estava sentado numa sala de aula como aluno do Machon Aravá. A proposta do Instituto é grandiosa, mas afinal, não é de propostas grandiosas que o mundo está precisando? O meio ambiente está seriamente ameaçado – aquecimento global, destruição da biodiversidade, poluição, falta de acesso à água… E no Oriente Médio, há um conflito que já dura décadas, acumulando fracassos de negociações. A solução desse conflito não parece iminente, mas em paz ou não, querendo ou não, os povos do Oriente Médio compartilham o ar, a água e o solo. Então, a proteção do meio ambiente de forma a permitir uma vida saudável é um interesse dos povos da região. Se Israel já sofre com escassez de água, o caso da Jordânia é muito pior. O dos palestinos tampouco é confortável. E as fontes de água para os três povos são as mesmas. Devido à proximidade, a poluição do ar e do solo tem consequências para todos.
Campo de captação de energia solar no deserto.
Campo de captação de energia solar no deserto.
O Machon Aravá, fundado por jovens idealistas do kibutz Keturá, isolado no vale da Aravá, sustenta que não podemos esperar um acordo de paz para começar a cooperar para proteger o meio ambiente. É urgente! E mais, a própria cooperação ambiental pode ser um disparador de cooperações mais profundas, coexistência, paz. Para por em prática esse ideia, fundaram um instituto de pesquisa e ensino (Machon Aravá), filiado à Universidade Ben Gurion (os créditos acadêmicos e as provas são da universidade), com excelentes pesquisadores e professores (todos com doutorado), localizado dentro do kibutz. Os alunos e os professores são israelenses, palestinos e jordanianos, além de alguns alunos de outras partes do mundo. Nós moramos dentro do kibutz, juntos, compartilhando alojamentos e quartos. Temos aulas que vão desde recursos hídricos, geologia e ecologia até as relações entre as sociedades e o meio ambiente que as rodeiam, de um ponto de vista bem antropológico. Por essas disciplinas, recebemos crédito (que podem ser de graduação ou mestrado) da Universidade Ben Gurion, e temos a opção de desenvolver projetos de pesquisa. Além da parte acadêmica, temos sessões semanais de debates diretos sobre o conflito, política, e notícias da região. Temos trabalhos de campo, e aulas de hebraico e árabe. O idioma oficial do instituto é inglês.
Tamareira de 2000 anos na Cisjordânia
Tamareira de 2000 anos no kibutz Ketura
Trabalho de campo para coletar insetos em acácias, Nahal Tzukim.
Trabalho de campo para coletar insetos em acácias, Nahal Tzukim.
Eu demorei quase um ano para começar a escrever sobre a minha experiência lá. Como o deserto, com quase nenhuma cobertura, que se expõe desnudo e vulnerável ao Sol e às estrelas, também nós temos os aspectos mais íntimos da nossa identidade constantemente testados e questionados. Marcamos juntos datas como o Yom haShoá 1, Yom haZikaron 2, Yom haAtzmaut 3,  Nakba 4, o Dia da Terra 5,… É difícil se manter firme, o tempo todo, as lágrimas muitas vezes são a única maneira de aliviar a tensão. É claro que teatro, jogos, trilhas e festas às vezes também ajudam.
Fizemos um trabalho de campo para conhecer a bacia hidrográfica que é a principal fonte de água para israelenses, palestinos e jordanianos, a bacia do rio Jordão (e lago Kineret). Vimos como os drusos estão inseridos nesse contexto, em Majdal Shams. Vimos como a Barreira de Separação não impede que uma cidade judaica em Israel e uma cidade árabe na Cisjordânia cooperem no tratamento do esgoto. Vimos como a dessalinização da água do mar está alterando alguns componentes desse balanço hídrico. Fomos à Jerusalém Oriental, onde almoçamos numa casa palestina que já foi demolida (por Israel) e reconstruída (por uma ONG israelense) algumas vezes, às margens do Vale Kidron 6. Fomos tomar chá com palestinos que se recusam a sair de Silwan, a Cidade de David. Vimos uma escola onde já estudam juntos judeus e árabes.
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Almoço numa casa palestina no vale do Kidron, Jerusalém Oriental.
Depois de ter ficado mais amigo de um palestino, fui com outras pessoas passar um fim de semana na casa dele, em Nablus. Estava tomando chá na varanda, quando começaram a cair flores em mim. Olhei para cima e duas crianças, sem querer saber quem éramos ou da onde vínhamos, nos jogavam flores. Por outro lado, tivemos que criar nomes fictícios para nossos amigos israelenses, para não sermos percebidos ao sairmos à rua. Fomos a um campo de refugiados palestinos, onde presenciei um debate riquíssimo, em inglês, entre dois palestinos, carregado de auto-crítica às ações palestinas, e de reconhecimentos de coisas positivas feitas por Israel. Passei por um checkpoint. Vi um soldado israelense espancando e retendo um palestino desarmado diante de sua mulher e dois filhos. Fomos ao túmulo dos patriarcas e matriarcas em Hevron, não sei pra que, pois naquele momento a visita me pareceu desprovida de qualquer sentido. Hoje entendo que possui tanto para mim, quanto para eles. Fui guiado em Hevron por um palestino que se lamenta até hoje que sua ex-namorada judia, colona (a menina mais linda que ele já conheceu), se casou com um judeu, mas seus amigos colonos judeus são bons de futebol, pelo menos.
Até hoje, recebo Shabat Shalom de alguns desses palestinos.
Alguns dilemas: Um dia, um grande amigo israelense que conheci lá me confidenciou: “cara, se eu for chamado pro miluim 7 talvez eu reviste no checkpoint os pais ou irmãos de alguém que estuda com a gente.” Achei esse dilema complicado, mas não tanto quanto esse outro. Um israelense do curso foi convocado pro miluim para a operação Coluna de Fogo 8, no final de 2012. Seu namorado da Jordânia, assim como 60% dos jordanianos, tem origem palestina…
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Visita a uma casa palestina em Silwan.
Conheci um jordaniano que acha Tel Aviv a melhor cidade do mundo. Uma jordaniana se encantou pelo estilo de vida do kibutz. Alguns palestinos achavam muito boas as nights do kibutz. Preciso levá-los pra Lapa um dia.
Muitos palestinos não conseguem ainda entender por quê o KKL 9 é um dos principais patrocinadores do instituto, e se questionam sobre receber essa ajuda.
Tive aulas com um professor judeu sul-africano naturalizado israelense, que tem projetos de cooperação com palestinos de Gaza para construir dispositivos domésticos de dessalinização da água do mar. Um professor palestino é o diretor de pesquisas de um centro de energia renovável, e agora o instituto abriga o maior campo de captação de energia solar do Oriente Médio. Uma pesquisadora judia norte-americana naturalizada israelense e membra do kibutz fez germinar uma semente de tamareira encontrada em Massada, preservada pela secura do deserto por quase 2 mil anos. Agora tem uma tamareira da época do rabi Akiva e do rabi Yochanan ben Zakai crescendo no kibutz. Infelizmente, ela é macho, não dará tâmaras. Se bem que as tâmaras modernas da Árava não deixam nada a desejar. Enfim, ela entrou no livro dos recordes, até que um gaiato fez germinar uma semente ainda mais antiga, congelada na Sibéria.
Eu traduzi o tekes 10 de Yom haShoá do kibutz para um palestino, que se emocionou e prestou o mesmo respeito que eu às vítimas da Shoá 11.
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Varanda da casa em Nablus
Duas anedotas: o melhor amigo que fiz no Machon Aravá foi um judeu argentino naturalizado israelense. Um dia, conversava com ele no gramado do campus, quando passa um palestino e diz: “vejam, um brasileiro e um argentino ficaram amigos. Esse Machon Aravá faz mesmo milagres. A paz no Oriente Médio agora é fácil.” Em outra ocasião, numa discussão política sobre o Estado Palestino, eu defendia que aos colonos judeus poderia ser dada a opção de se tornarem cidadãos palestinos, ao que um palestino retrucou: “De jeito nenhum! Isso é inconcebível! Como imaginar os palestinos tendo que viver com pessoas que serviram no exército de Israel e que podem ter matado alguém da família deles?”. De pronto, rebati numa ironia bem ácida: “Pois é, os israelenses não tem esse problema, pois quem matou a família deles se explodiu, não existe mais!” Depois de dois segundos (longuíssimos) de um silêncio muito tenso, todos, israelenses, palestinos e internacionais caíram na gargalhada, e não conseguimos mais voltar à discussão. Um pouco de humor ajudava às vezes.
Não sei se despertados para a urgência de querer tentar ajudar a resolver o problema, ou se porque depois de passar por uma experiência forte como essa é difícil voltar a viver uma vida burguesa em algum país ocidental, só sei que a maioria dos internacionais que fizeram o curso e que são judeus, fizeram aliá. E isso apesar de toda a crítica a Israel que escorreu deles durante o curso, e apesar também do eterno sentimento de culpa de conseguir uma cidadania tão automaticamente, enquanto que para muitos dos palestinos que estudaram conosco pode ainda demorar muitos anos para ter até mesmo um país.
O profeta Isaías disse que um dia o lobo e o cordeiro viverão juntos, e que as pessoas plantarão vinhedos e comerão seu fruto. Miquéias (cap. 4; vers. 4) disse que no tempo vindouro, de paz, cada pessoa se sentará à sombra do seu vinhedo e da sua figueira 12. Talvez os profetas tenham utilizado essa metáfora com elementos da natureza para nos dar uma pista do caminho a seguir. Lobos da estepe ou da aravá, cordeiros, todos devemos nos unir para plantar vinhedos ou tamareiras de 2 mil anos de idade, sentarmos juntos à sombra de uma figueira ou de uma acácia 13, e apreciarmos a paz que isso nos trará.
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Rafael Stern é formado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, e atualmente faz mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Durante o ano de 2012 viveu em Israel, quando estudou no Machon Aravá, e depois ficou trabalhando no Instituto Weizmann.
“A natureza não conhece fronteiras” é o lema do Instituto Arava.
Notes:
  1. Dia de lembrança do Holocausto 
  2. Dia de Lembrança dos soldados que morreram em defesa de Israel, e das vítimas de atentados 
  3. Dia da Independência de Israel 
  4. Em árabe, “tragédia”. É como os palestinos se referem ao dia da independência de Israel, considerado o dia da tragédia nacional palestina. 
  5. No dia 30 de Março de 1976, em protestos contra a desapropriação de terras palestinas por Israel na região da cidade palestina de Sachnin, para expandir a cidade de Carmiel, 6 palestinos foram mortos e centenas presos. 
  6. Rio que só tem água na época das chuvas, e que drena a água que choveu em Jerusalém, levando-a até o Mar Morto. 
  7. Serviço dos reservistas do exército. 
  8. Operação que ocorreu em Novembro de 2012, para tentar acabar com o lançamento de foguetes de Gaza contra Israel. 
  9. Fundo Nacional Judaico. Fundado em 1901, com o objetivo de cuidar do solo da Terra de Israel para a imigração sionista, hoje se encarrega principalmente da preservação do meio ambiente 
  10. Termo hebraico para cerimônia 
  11. Holocausto 
  12. Por ser uma das árvores nativas de Israel que fornecem a melhor sombra, se sentar à sombra de uma figueira é uma expressão do tempo do Tanach que simboliza tranquilidade, paz. 
  13. Única árvore que cresce de forma selvagem na aravá, e que tem relativamente boa dispersão na região. É a árvore que está no símbolo do Machon Aravá. 

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