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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O rei mochileiro
Diário inédito mostra as aventura
de dom Pedr

Fernando Luna

O segundo e último imperador do Brasil sempre aparece nos livros escolares como um senhor barbudo, de casaca, que veio depois de dom Pedro I e antes da princesa Isabel. Dom Pedro II é tão opaco como governante, mesmo tendo patrocinado uma guerra violentíssima contra o Paraguai, que até parece ter feito o baile na Ilha Fiscal só para depois entregar o país aos generais republicanos. Esquisitão e nada afeito ao exercício do poder é pouco, como agora começa a ser revelado. Tanto que, em 1876, dom Pedro II deu um jeito de abandonar o reino por dezoito meses. Partiu para uma viagem por quatro continentes, em que visitou cerca de 100 cidades. Anotou impressões em diários, que permanecem em grande parte inéditos. No final deste mês, chega pela primeira vez às livrarias D. Pedro II na Terra Santa, organizado e comentado pelo historiador Reuven Faingold, o diário do monarca sobre sua visita ao Líbano, Síria e Palestina. O que aparece no relato é um homem ainda mais despojado do que se supunha. Alguém que, apesar de rei e das facilidades que tal posição costuma oferecer, dormiu em barracas, qual um mochileiro, hospedou-se em hotéis vagabundos, cavalgou por mais de sete horas seguidas, arriscou-se a enfrentar beduínos, freqüentou banhos turcos e colecionou suvenires.
A aparente tranqüilidade de dom Pedro II durante sua empreitada não refletia a situação do Brasil. O país era uma exceção monarquista em um continente sem reis. Para piorar, o regime escravocrata, base econômica do império, começava a se esfacelar. O movimento abolicionista era ouvido nas ruas e ganhava espaço em jornais. Deixar o poder por tanto tempo nas mãos da inexperiente princesa Isabel, sob a influência do conde d'Eu, talvez fosse arriscado demais. Mesmo assim, Pedro II convenceu a Câmara a deixá-lo partir. Usou como desculpa a conveniência de uma visita oficial aos Estados Unidos, que comemoravam o centenário da independência e sediavam a Exposição Universal — uma grande feira que exibia as novidades tecnológicas produzidas em diversos países. A exposição era especialmente atraente para dom Pedro II, que se interessava tanto por línguas mortas quanto pelas últimas invenções, um autêntico diletante.
Comitiva gigantesca — Foi justamente o interesse pela história do cristianismo que levou dom Pedro II à Terra Santa. Durante 24 dias, o imperador percorreu cerca de 500 quilômetros a cavalo — numa média de 20 quilômetros por dia (veja mapa). Uma marca impressionante, especialmente quando se leva em conta que o rei se fazia acompanhar de uma comitiva gigantesca, de 200 pessoas. Providenciar hospedagem, comida, água e segurança para tanta gente no meio do deserto era quase uma operação de guerra. Dom Pedro II também não era mais um jovenzinho aventureiro. Tinha 50 anos e já estava fora de casa havia oito meses. Mesmo assim, nas 143 páginas de seu diário, em apenas duas ocasiões se queixou de cansaço. "Preciso de descanso", registrava em 30 de novembro de 1876. No dia seguinte, no entanto, encontrou disposição para levantar às 7 da manhã, caminhar por toda Jerusalém e parte dos arredores, com direito a subir o Monte das Oliveiras.
Cavalgando uma égua branca, dom Pedro II dispensava o relativo conforto oferecido pelas seis liteiras da caravana — muito diferente do que faziam alguns de seus companheiros. O visconde do Bom Retiro, por exemplo, queixando-se de gota, exigiu ser carregado pelos criados. O visconde de Souza Fontes foi na mesma toada. Mudou apenas a desculpa: em seu caso, a aflição eram as dores no abdome. Mas, em terreno pedregoso e irregular, a mordomia nem sempre era das mais seguras. Num dos raros momentos em que abandonou o estilo descritivo do diário, dom Pedro II contou de forma bem-humorada o tombo de uma das acompanhantes de sua esposa, a imperatriz Teresa Cristina: "O [criado] que carregava por detrás da liteira da Joaninha caiu. Ela gritou um pouco, achando-se em posição tão inconveniente, porém nada sofreu a não ser em seu pudor". O bom humor o acompanhava até nos momentos mais desconfortáveis. Nos arredores de Beirute, o imperador pernoitou em um acampamento improvisado. Seria natural que um rei esbravejasse contra as acomodações precárias. Dom Pedro não se alterou. Limitou-se a registrar: "A barraca sempre deixa entrar vento e puseram na cama um cobertor, algum tanto ralo, e por cima uma manta que facilmente caía de lado, como os travesseiros me fugiam da cabeça".
Docinhos no mosteiro — Os povos beduínos não se submetiam ao poder central dos turcos, que governavam a região. Nômades do deserto, dedicavam-se a saquear os viajantes desprotegidos. Ciente do perigo, mas pragmático —"Este lugar é famoso pela tendência de seus habitantes a apropriar-se do alheio" —, dom Pedro II se fez acompanhar de uma guarda improvisada. Durante parte da viagem, a segurança era garantida pelos próprios beduínos. "Paga-se-lhes alguma coisa, e já, ou...", descreve o imperador. O "ou" a que se referia era, provavelmente, o risco de ser morto.
"Dom Pedro II viajava como Pedro de Alcântara", afirma a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, autora de As Barbas do Imperador, outra obra sobre Pedro II. Como um turista moderno, o imperador comeu docinhos preparados por monges de um mosteiro, catou pedras nas calçadas de Damasco para levar como lembrança, gravou seu nome em uma rocha nos arredores de um templo, tomou banhos turcos, maravilhou-se com as paisagens e se emocionou no Santo Sepulcro — que visitou três vezes, inclusive no dia de seu 51º aniversário. Mas o espírito aventureiro tinha limites. Mesmo quando teve chance, dom Pedro II preferiu não encarar histórias das Mil e Uma Noites. Em 16 de novembro, ele declinou o convite para visitar o harém do emir Abd-el-Kader. Durante as noites, dedicava-se a exercitar seu hebraico traduzindo trechos bíblicos. O diário da visita à Terra Santa é uma oportunidade de conhecer melhor o homem que governou o Brasil por mais tempo do que qualquer outra pessoa.

Damasco: "Fui visitar Abd-el-Kader, a quem tinha prevenido. Achei na porta da rua com seus dois filhos mais velhos. Tratou-me com muita amabilidade. Deu-me chá excelente com um gostinho muito bom de hortelã e pimenta, mostrou-me parte de sua casa, oferecendo-me até levar-me ao harém, o que não aceitei."
Nazaré: "A estrada de Nazaré foi uma das mais notáveis desta viagem. A população acudiu em grande parte fora das portas, formando alas e muitos meninos cantando, outros numerosos ocupavam os terraços das casas. Os sinos repicavam e as palmeiras balançavam-se por cima da porta da cidade. Tomara já o dia de amanhã para melhor ver tão linda povoação."
Jerusalém: "Aproximei-me dos muros de Jerusalém onde está a torre de Mariana com seu tope de forma de tiara e a porta de Jaffa. Fomos à Igreja do Santo Sepulcro. Ouvi missa e depois corri todos os passos da Via Dolorosa. Subi até a capela do Calvário. Defronte do altar à direita, Cristo foi despido! Mais para o lado do altar pregado na cruz, sob o altar da esquerda, fincou-se a cruz."
Mar Morto: "Cheguei à praia às 8h15. O mar perde-se de vista rodeado de grandes montanhas. Defronte da praia, e a pouca distância, vi uma ilha de pedra chamada Redjom-Luth. Quando cheguei, passava um bando de quinze marrecas. A água é amargosa picante e oleosa ao tato."
Foto: Divulgação/Joaquim Insley Pacheco
o II pelo Oriente Médio

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