CONTRA-SENSO
"ma non é una cosa seria"
Posts Tagueados ‘História do Judaísmo’
Descobrir-se judeu sem o ser
com um comentário
Um dos livros mais terríveis que já li na vida foi O Pássaro Pintado de Jerzy Kosinski, que na vastíssima literatura do Holocausto distingue-se por, como O Diário de Anne Frank, abordar a tragédia do judaísmo europeu na perspectiva de uma criança. Mas ao contrário da tônica do Diário, que demonstra como Hitler não conseguiu tocar na dignidade de uma menina, de seu ambiente, de uma família escondida num refúgio secreto e do testemunho da solidariedade e heroísmo da pequena rede que tentava mantê-los a salvo e fazendo as conexões com o perigoso mundo exterior; O Pássaro Pintado asfixia o leitor ao narrar a trajetória de um garotinho cujos pais, para salvá-lo, o entregam a moradores de vilarejos semeados entre florestas e campos no interior semimedieval da Polônia ocupada, onde fica à mercê durante toda a guerra de camponeses embebidos em antissemitismo pré-moderno e na brutalidade própria da possessão do corpo social naquele momento. Se o Diário é claustrofóbico, o Pássaro é agorafóbico.
Em um daqueles momentos que somente a intuição pré-congnitiva infantil permite a captação sintética da realidade de uma experiência, momento que dá, inclusive, nome ao livro, Kosinski conta o caso do passarinheiro que o abrigou por certo tempo. Tendo apanhado um corvo, o polaco resolve reparar-lhe o negrume das penas pintando-o de multicor. Satisfeito, libertou o animal que, por natureza, por disposição interna, retorna para junto de seus congêneres, o bando dos corvos. Contudo, para estes, já não é um corvo – é um completo estranho, uma anomalia, um outro, ou pior: um mesmo que já não é idêntico. Lançam-se contra o alien, numa selvageria de bicadas, sangue e penas. Não é preciso dizer do que se trata, a que se refere ou como é aplicado o caso: judeus serão sempre corvos pintados – por mais que sejam corvos, como todos os outros, estão marcados, estigmatizados, impedidos e sentenciados. Uma cicatriz cainita invertida.
O processo de assimilação das populações judaicas europeias foi conturbado, desastroso, frustrante e trágico. Na madrugada que antecedeu a aurora da modernidade, na hora mais escura, com o surgimento e arranjamento das estruturas que erigiriam os Estados Nacionais, a inclusão voluntária ou compulsória na Península Ibérica como parte da primeira fórmula pré-Westfalia de identificação entre coroa e mitra, território e fé, conduziu ao aniquilamento de uma das mais profícuas e dinâmicas comunidades judaicas de todos os tempos, e produziu o terrível efeito da segregação e perseguição pós-inclusão, o cripto-judaísmo, o marranismo e o apartheid entre cristãos-novos e cristãos-velhos. A expulsão propriamente dita, de Espanha em 1492, e de Portugal em 1496, foi menos dramática em seus frutos, do que a devassa inquisitorial que se seguiu aos que preferiram permanecer e “integrar-se”. Aqueles que não eram outra coisa que “marcados” e reconheciam isto, diante da recusa de hospitalidade ou do reconhecimento de seu valor na construção da civilização ibérica, retiraram-se; aqueles que escolheram ou reconheciam-se como “corvos”, negros em todo caso, foram submetidos ao escrutínio de uma instituição que reivindicava a prerrogativa de sondar os interiores da alma, para reconhecer em suas profundidades as reais cores do rebanho, separando do corpo sadio aqueles irremediavelmente portadores da mácula judaica.
Na morna manhã moderna, projetos de países como Holanda, Polônia, Lituânia, a própria Inglaterra que decapitara seu rei, clivados por questões religiosas e atentos à necessidade de uma nova fórmula de paz que incluísse a mínima tolerância, experimentam soluções com os judeus. Nunca seriam iguais, ou seja, iguais em direitos, mas eram semelhantes – o reconhecimento da dignidade humana e o parentesco via religião bíblica despontam aí de forma promissora.
No zênite moderno, a França napoleônica concede direitos aos judeus, suas tropas derrubam as paredes dos guetos nas cidades que conquistam. Mas logo vem o ocaso: tanto as chamadas “Leis de Maio” retrocedem o processo de “igualdade”, como o Affaire Dreyfus deixa a indelével certeza de que nem as Luzes seriam capazes de resolver a questão – ao contrário, traria perversidades novas. O judaísmo alemão, por sua vez, realizou seu processo e assimilação pela participação efetiva na unificação alemã, nas artes, na academia, nos negócios, na política, na reforma do próprio Judaísmo: eram alemães de religião hebraica. Sua alma era alemã, suas cores judaicas. Muito diferente do caso francês ou das repúblicas reformadas, onde as cores republicanas garantiam a existência e expressão da alma judia.
Tanto Anne Frank quanto Jerzy Kosinski descobriram-se judeus sem o ser. Frank, a garota triplamente emancipada (enquanto judia alemã, mulher e de classe média), com todas as garantias de um cidadão de um Estado avançado, e isto à frente de sua condição judaica, entende, ou tenta entender, na clausura compulsória e em Auschwitz, que era, sobretudo e unicamente, judia. Kosinski, um garoto, quase um bebê, não era nada mais que isto, e descobriu-se judeu em formas que somente seus verdugos poderiam imaginar um – aquele arquétipo de judeu, definitivamente, ele não poderia ser. No ocaso da modernidade, descobriram-se como aquilo que jamais julgaram ser: um pássaro pintado, rejeitado por aqueles que julgavam iguais.
Ora, que ironia terrível! Quinhentos anos depois dos eventos dramáticos em Espanha e Portugal, depois de enfrentados os terrores da pior das inquisições, os descendentes dos judeus sefarditas que, ou não quiseram ou não puderam escolher o exílio, descobrem-se judeus. Na nova disposição filossemítica, no intervalo entre as tormentas, os filhos de uma catástrofe são despertados para o fato de sua origem. Dizem-lhes que são judeus, sem o ser. Não foram, nunca, iguais aos seus conterrâneos; e agora, também não são aos seus correligionários. Para os outros judeus, sobretudo para aqueles de preto (tanto no sentido figurado como lato), estão marcados com outros ferros. Voam sem bando, sem canto, sem cor. A cicatriz interna pouco importa: uma dor incomunicável. São sem memória, já que a memória que os rotula como etiquetas em fósseis e peças de museu é de outros, dizem. São sem futuro, já que não têm passado promissor: descobrem-se judeus sem sê-lo. São aves tristes, cinzas, que voam com asas encharcadas de lágrimas, vertidas dos olhos por aquele aperto doído chamado saudade.