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sábado, 9 de fevereiro de 2013

CONTRA-SENSO

"ma non é una cosa seria"

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Descobrir-se judeu sem o ser

Um dos livros mais terríveis que já li na vida foi O Pássaro Pintado de Jerzy Kosinski, que na vastíssima literatura do Holocausto distingue-se por, como O Diário de Anne Frank, abordar a tragédia do judaísmo europeu na perspectiva de uma criança. Mas ao contrário da tônica do Diário, que demonstra como Hitler não conseguiu tocar na dignidade de uma menina, de seu ambiente, de uma família escondida num refúgio secreto e do testemunho da solidariedade e heroísmo da pequena rede que tentava mantê-los a salvo e fazendo as conexões com o perigoso mundo exterior; O Pássaro Pintado asfixia o leitor ao narrar a trajetória de um garotinho cujos pais, para salvá-lo, o entregam a moradores de vilarejos semeados entre florestas e campos no interior semimedieval da Polônia ocupada, onde fica à mercê durante toda a guerra de camponeses embebidos em antissemitismo pré-moderno e na brutalidade própria da possessão do corpo social naquele momento. Se o Diário é claustrofóbico, o Pássaro é agorafóbico.
Em um daqueles momentos que somente a intuição pré-congnitiva infantil permite a captação sintética da realidade de uma experiência, momento que dá, inclusive, nome ao livro, Kosinski conta o caso do passarinheiro que o abrigou por certo tempo. Tendo apanhado um corvo, o polaco resolve reparar-lhe o negrume das penas pintando-o de multicor. Satisfeito, libertou o animal que, por natureza, por disposição interna, retorna para junto de seus congêneres, o bando dos corvos. Contudo, para estes, já não é um corvo – é um completo estranho, uma anomalia, um outro, ou pior: um mesmo que já não é idêntico. Lançam-se contra o alien, numa selvageria de bicadas, sangue e penas. Não é preciso dizer do que se trata, a que se refere ou como é aplicado o caso: judeus serão sempre corvos pintados – por mais que sejam corvos, como todos os outros, estão marcados, estigmatizados, impedidos e sentenciados. Uma cicatriz cainita invertida.
O processo de assimilação das populações judaicas europeias foi conturbado, desastroso, frustrante e trágico. Na madrugada que antecedeu a aurora da modernidade, na hora mais escura, com o surgimento e arranjamento das estruturas que erigiriam os Estados Nacionais, a inclusão voluntária ou compulsória na Península Ibérica como parte da primeira fórmula pré-Westfalia de identificação entre coroa e mitra, território e fé, conduziu ao aniquilamento de uma das mais profícuas e dinâmicas comunidades judaicas de todos os tempos, e produziu o terrível efeito da segregação e perseguição pós-inclusão, o cripto-judaísmo, o marranismo e o apartheid entre cristãos-novos e cristãos-velhos. A expulsão propriamente dita, de Espanha em 1492, e de Portugal em 1496, foi menos dramática em seus frutos, do que a devassa inquisitorial que se seguiu aos que preferiram permanecer e “integrar-se”. Aqueles que não eram outra coisa que “marcados” e reconheciam isto, diante da recusa de hospitalidade ou do reconhecimento de seu valor na construção da civilização ibérica, retiraram-se; aqueles que escolheram ou reconheciam-se como “corvos”, negros em todo caso, foram submetidos ao escrutínio de uma instituição que reivindicava a prerrogativa de sondar os interiores da alma, para reconhecer em suas profundidades as reais cores do rebanho, separando do corpo sadio aqueles irremediavelmente portadores da mácula judaica.
Na morna manhã moderna, projetos de países como Holanda, Polônia, Lituânia, a própria Inglaterra que decapitara seu rei, clivados por questões religiosas e atentos à necessidade de uma nova fórmula de paz que incluísse a mínima tolerância, experimentam soluções com os judeus. Nunca seriam iguais, ou seja, iguais em direitos, mas eram semelhantes – o reconhecimento da dignidade humana e o parentesco via religião bíblica despontam aí de forma promissora.
No zênite moderno, a França napoleônica concede direitos aos judeus, suas tropas derrubam as paredes dos guetos nas cidades que conquistam. Mas logo vem o ocaso: tanto as chamadas “Leis de Maio” retrocedem o processo de “igualdade”, como o Affaire Dreyfus deixa a indelével certeza de que nem as Luzes seriam capazes de resolver a questão – ao contrário, traria perversidades novas. O judaísmo alemão, por sua vez, realizou seu processo e assimilação pela participação efetiva na unificação alemã, nas artes, na academia, nos negócios, na política, na reforma do próprio Judaísmo: eram alemães de religião hebraica. Sua alma era alemã, suas cores judaicas. Muito diferente do caso francês ou das repúblicas reformadas, onde as cores republicanas garantiam a existência e expressão da alma judia.
Tanto Anne Frank quanto Jerzy Kosinski descobriram-se judeus sem o ser. Frank, a garota triplamente emancipada (enquanto judia alemã, mulher e de classe média), com todas as garantias de um cidadão de um Estado avançado, e isto à frente de sua condição judaica, entende, ou tenta entender, na clausura compulsória e em Auschwitz, que era, sobretudo e unicamente, judia. Kosinski, um garoto, quase um bebê, não era nada mais que isto, e descobriu-se judeu em formas que somente seus verdugos poderiam imaginar um – aquele arquétipo de judeu, definitivamente, ele não poderia ser. No ocaso da modernidade, descobriram-se como aquilo que jamais julgaram ser: um pássaro pintado, rejeitado por aqueles que julgavam iguais.
Ora, que ironia terrível! Quinhentos anos depois dos eventos dramáticos em Espanha e Portugal, depois de enfrentados os terrores da pior das inquisições, os descendentes dos judeus sefarditas que, ou não quiseram ou não puderam escolher o exílio, descobrem-se judeus. Na nova disposição filossemítica, no intervalo entre as tormentas, os filhos de uma catástrofe são despertados para o fato de sua origem. Dizem-lhes que são judeus, sem o ser. Não foram, nunca, iguais aos seus conterrâneos; e agora, também não são aos seus correligionários. Para os outros judeus, sobretudo para aqueles de preto (tanto no sentido figurado como lato), estão marcados com outros ferros. Voam sem bando, sem canto, sem cor. A cicatriz interna pouco importa: uma dor incomunicável. São sem memória, já que a memória que os rotula como etiquetas em fósseis e peças de museu é de outros, dizem. São sem futuro, já que não têm passado promissor: descobrem-se judeus sem sê-lo. São aves tristes, cinzas, que voam com asas encharcadas de lágrimas, vertidas dos olhos por aquele aperto doído chamado saudade.
Escrito por André Tavares
29/03/2012 em 14:23

Breve história do Marranismo – I

Os judeus estão espalhados pelo mundo afora faz muito tempo. Desde o século IV aEC que não nos encontramos mais reunidos num mesmo lugar, mas em dois mil e quinhentos anos de diáspora nos mantivemos judeus, unidos por uma identidade comum. E uma das comunidades judaicas no exílio mais antigas estava em Sefarad, o nome hebraico para a Península Ibérica. Sem dúvida, esse nome é mais antigo que os próprios termos Ibéria, Espanha ou Portugal.
Os judeus sefaraditas permaneceram na península que os romanos conquistaram dos celtiberos, suportou a passagem avassaladora dos vândalos (daí o nome Andaluzia, região sul da Espanha, corruptela de Vandaluzia – mas isso é uma hipótese apenas), até a “plena” cristianização da região com os reis visigodos. Judeus e cristãos conviveram (relativamente) muito bem por algum tempo, mesmo séculos. Tão bem que o filo-semitismo dos cristãos nativos foi um sério problema para a Igreja Romana, que realizou concílios específicos para lidar com a questão. Mas lá pelo século VII, com o rei Sisebuto iniciou-se a era das conversões forçadas. Aos judeus que recusaram o batismo, puniu com a morte.
Depois vieram os mouros, na impressionante expansão do Islam. Sob uma divisão da dinastia Omíada (Umáida), constituiu-se o famoso Califado de Córdoba, que durou do século VIII ao XI. Os califas omíadas de Córdoba eram profundamente interessados em desenvolvimentos científicos, filosóficos e econômicos; isto abriu uma rota de ascensão para os judeus sefarditas, e muitos alcançaram grande renome e importância: médicos, filólogos, filósofos e sábios religiosos, químicos (al-químicos), etc.
Com a fragmentação do califado decorrente da guerra civil, os mouros na Ibéria passaram a sofrer forte pressão dos reinos cristãos ao norte. O que se sucedeu foi a famosa guerra de reconquista que formou os reinos de Aragão, Castela e Portugal. A reconquista só foi completada com a tomada de Granada pelos Reis Católicos, Ferdinando e Isabel, em 1492. Com o declínio das capacidades omíadas, para resistir ao assalto cristão, houve que se recorrer aos mamelucos do norte da África para, gente menos cultivada e praticante de um islamismo mais intolerante. Daí temos uma nova onda de conversões forçadas (agora ao Islam), ameaça e massacres de judeus. O maior sábio judeu da Idade Média, sefardita, RAMBAM ou Maimônides, teve que fugir para o Egito e depois para a Palestina. Era o fim da Era de Ouro Ibérica.
Nessa situação, a conquista cristã da península veio a calhar, diriam alguns. A população judaica nos novos reinos católicos era consideravelmente grande, e contava com gente ilustre, de posses e bem formada. Mas apesar de alguma tolerância inicial, o triunfo da Guerra de Reconquista elevou o moral do catolicismo ibérico – tanto que a Espanha atribuiu a si o papel de guardiã da fé católica. A tomada de Granada em 1492 coincide com a chegada à América e, um ato verdadeiramente cristão, a resolução do problema judaico em Espanha.
Em 31 de março de 1492, os reis católicos, Ferdinando e Isabel, assinaram o Édito de Alhambra, que ordenava que todos os judeus deveriam deixar a Espanha até o dia 31 de julho do mesmo ano. A alternativa era ficar e ser batizado, tornando-se cristãos católicos. Os que quisessem deixar o país, podiam levar suas posses, a não ser ouro, prata e dinheiro cunhado. Ou seja, bens imóveis não poderiam ser convertidos em moeda pela venda… seriam deixados em Espanha. O número de judeus que deixaram seus lares e fugiram é motivo de grande controvérsia, variando entre 200.000 e 800.000 pessoas. A maior parte fugiu para Portugal, quando D. Manuel I, percebendo o quanto poderia acrescentar a Portugal, convidou os judeus para irem para lá.
Na Portucália os judeus tinham alto estatus, e não eram raros os títulos de nobreza concedidos a judeus – casamentos misto com a nobreza cristã também foram registrados. Portugal parecia ser um porto calmo. Dom Manuel I, o Venturoso, conduziu seu reino na odisséia das grandes navegações, e também tinha pretenções cruzadas. Contudo, foi generoso, a princípio, com os judeus – libertou os que foram presos por seu antecessor, e primo, Dom João II.
Mas Dom Manuel almejava a unificação ibérica, ou seja, o trono espanhol. Para tanto, decidiu casar-se com a filha de Isabel de Castela e Ferdinando de Aragão, a infanta Isabela de Aragão. A condição do enlace, por parte dos pais espanhóis, era que o rei português mudasse sua política de tolerância aos judeus, já que sua filha não se casaria com um amigo dos assassinos de Cristo.
Em 1497 a escolha foi posta novamente diante dos judues sefaraditas: a expulsão ou a conversão. Como no caso espanhol, quem insistisse em ficar sem se batizar, seria punido com a morte. Como permaneceram fiéis à fé, muitos judeus escolheram o exílio, iniciando um grande evasão de recursos – intolerável para o tesouro português, que logo taxou a emigração.
Nesse ponto, começa uma das grandes tragédias do Judaísmo. Muitos judeus hoje em dia insistem em dizer que aqueles que ficaram em Portugal e Espanha e se submeteram às conversões forçadas não honraram o compromisso com a fé judaica e o maior dever, o martírio pela fé, a Santificação do Nome. Isso é bastante injusto, tanto que muitos rabinos da época absolveram os conversos, asseverando que a escolha pela vida pensando num retorno posterior à fé judaica era compreensível. De qualquer maneira, não cabe a ninguém julgar a fé ou motivos de quem se submeteu, naquele momento, àquela humilhação.
Então os judeus que permanecem na Península Ibérica foram forçados a se converterem ao cristianismo católico, são os batizados em pé. Assim, creram seus opressores cristãos, os reinos ibéricos estavam purgados da infidelidade e da perversão judaica. Contudo, apesar de algumas conversões terem sido sinceras, a grande parte dos judeus converteu-se apenas externamente, para sobreviver. Tendo em vista que o judaísmo passou por muitos períodos de provação mas sempre sobreviveu, não é de todo impossível pensar que logo alguma coisa aconteceria e seria possível retornar à fé abertamente. Assim surgiu o fenômeno do cripto-judeu, do cristão novo, do forçado, dos anussim.
Esses judeus conversos à fé cristã mantiveram secretamente a fé judaica, os ritos e observâncias, em casa, na clandestinidade. Mantiveram os casamentos entre si. Isso logo foi percebido pelos cristãos velhos, e a sinceridade das conversões foi posta em questão. Logo, para lidar com o caso, foram estabelecidos tribunais do Santo Ofício, ou Inquisição, para lidar especificamente com a heresia judaizante, os elementos conversos que mantinham práticas das Leis de Moisés, pervertendo a fé cristã.
Vejamos que isso era crucial para os reinos ibéricos. Nesse momento, eram os reinos cristãos que haviam conseguido impor derrotas aos potentosos mouros, a retomar terras cristãs, que mudaram o mundo europeu com as grandes navegações… eram os líderes da cristandade ocidental. Eram os reinos cristãos. Era seu dever manter a fé imaculada da Igreja para que alcançassem seu destino messiânico. A heresia judaizante, o cristão novo, era uma ameaça. E por trezentos anos os marranos, como ficaram conhecidos, foram perseguidos implacavelmente pela Inquisição.
Muitos fugiram, inclusive para o Brasil, no caso portugês, e para o México, no caso espanhol. Os que podiam, migravam para a Holanda e Itália, para a Europa central e Polônia, mas sobretudo para Turquia, Marrocos e Egito, onde havia comunidades judaicas estabelecidas. A nata do judaísmo sefaradita, a fina flor da intelectualidade ibérica foi morta, arruinada ou perdida para outras paragens.
Os que sobreviveram ficaram marcados com o estígma, a alcunha: cristão novo, marrano. Sem identidade, já que nunca seriam aceitos completamente na comunidade cristã, entre os cristãos velhos, vagaram preservando tradições e ritos, trapos de lembranças de uma trama de fios cada vez mais frágeis. Passando de pai para filho, de avô para neto… ou melhor, de mãe para filhos, de avó para netos, já que as mulheres, senhoras do lar, mantinham o segredo em ritos e costumes, mantinham acesa uma chama vacilante de memória.
Velas acesas ao entardecer de sexta-feira, proibição do sangue e da carne de porco, infreqüência na Igreja, orações e rezas familiares distintas das comuns, bençãos familiares, nomes… foi o que lhes restou… e um vazio na alma. Quem sabe seja por isso que apenas em português tenhamos essa palavra para essa dor da ausência, da distância: saudade.

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