HÁ UM SIGNIFICADO POLÍTICO NA RENÚNCIA DO PAPA?
A
renúncia do Papa é apresentada como uma decisão pessoal, devido à idade.
Evidentemente, é preciso buscar as razões de fundo para um gesto inédito nos
anais recentes da Igreja e que enfraquece ainda mais a sua
credibilidade.
Os
pontificados ficam historicamente identificados com alguns dos fatos ou decisões
mais importantes que marcaram esses períodos. O Papa Pio XII, contemporâneo do
nazismo e aliado de Hitler na sua ascensão ao poder, ficou indelevelmente
marcado por essa aliança. Mais no passado, o que resta na memória popular de
Papas como Rodrigo Borgia, ou Alexandre VI, senão a reputação cruel e devasso,
que nomeou o próprio filho Cesare Borgia, além de muitos outros parentes, como
cardeais? De Júlio III, a nomeação como cardeal-sobrinho do amante de 17 anos,
Innocenzo.
De
Joseph Ratzinger, o Bento XVI, o elemento mais marcante de seu pontificado,
antes da renúncia, parecia que iria ser a denúncia pública da pedofilia no
clero. Poderá essa renúncia tirar o foco desse problema e sua sucessão lançar
uma cortina de fumaça que oculte a série de escândalos?
Trago
nestes breves comentários, de alguém que não é um vaticanólogo, apenas algumas
evidências disponíveis para qualquer leitor de jornais de que essa renúncia não
é um raio em céu claro. Que evidências são essas?
As
de que o Vaticano viveu no pontificado de Bento XVI uma crise já antiga de perda
de influência social e política, agravada pela perda da credibilidade moral com
os escândalos de pedofilia. Mas ao se tratar dessa instituição, não se deve
esquecer que ela é, do ponto de vista financeiro, uma das maiores multinacionais
do planeta, com investimentos em bancos, corporações, reservas de ouro, etc.
(MANHATTAN, 1983 mostrou a dimensão dessa fortuna).
No
ano passado, a Igreja Católica viveu outra crise com as revelações de corrupção
e negociatas feitas a partir dos documentos vazados pelo mordomo do Papa, no que
ficou conhecido como Vatileaks. Dessa vez, a culpa não era do mordomo, que foi
preso, processado, condenado e depois perdoado.
O
Banco do Vaticano (o “banco mais secreto do mundo” como diz a revista Forbes
(JORISH, 2012) é o IOR (Instituto das Obras da Religião), fundado em 1942. Nesse
período o Vaticano vinha de uma colaboração com o regime nazista, por parte de
Pio XII, mas, ainda antes disso, de uma colaboração mais estreita com Mussolini,
que concedeu ao Vaticano em 1929 a assinatura do Tratado de Latrão com o estado
italiano.
Esse
tratado, também conhecido como Concordata, foi o que permitiu o reconhecimento
do Vaticano como um Estado dentro de outro Estado, incluindo a gestão das
próprias finanças e a manutenção da influência política sobre a Itália que
ficava com o catolicismo como religião oficial, o ensino confessional nas
escolas públicas e outras vantagens ao clero. Só em 1978 houve uma alteração que
tornou a Itália uma República laica e o divórcio foi
aprovado.
Rompendo
o isolamento em que o Vaticano havia ficado desde a vitória da república
italiana em 1870, Mussolini concedeu também vultosas indenizações à Igreja.
Parte desse dinheiro foi aplicado em Londres em aquisições imobiliárias que hoje
alcançam o valor de cerca de meio bilhão de libras esterlinas, embora o valor
real permaneça secreto, apesar das denúncias recentes do jornal Guardian (LEIGH;
TANDA; BENHAMOU, 2013).
Os
interesses econômicos do Vaticano também estão sendo afetados pela crise global,
o que levou inclusive que em 2012 ocorresse o maior déficit fiscal em muitos
anos no Vaticano, de cerca de 19 milhões de dólares (VATICAN, 2013). Nessa crise
também incide o custo financeiro com os processos por
pedofilia.
Os
escândalos de pedofilia, além do custo moral, têm um preço econômico com os
processos e indenizações, que só nos EUA, chegaram a três bilhões de dólares em
mais de três mil processos abertos, com 3.700 clérigos denunciados, 525 presos,
a maioria dos quais condenados e cumprindo penas.
Desde
os anos de 1950 até hoje cerca de seis mil sacerdotes já foram denunciados nos
Estados Unidos por abusos sexuais contra crianças, o que equivale a 5,6% do
total do clero estadunidense (SCHAFFER, 2012). Figuras de proa da Igreja, como o
líder dos Legionários de Cristo, no México, Marcial Maciel forma denunciados por
pedofilia e outros abusos.
Bento
XVI protegeu setores diretamente nazistas do clero, como o bispo Richard
Williamson, negacionista do Holocausto que havia sido excomungado por João Paulo
II, e cuja excomunhão foi revogada por Bento XVI em 2009. Apesar disso e de ter
atendido aos interesses de setores ultraconservadores da Opus Dei e do Caminho
Neocatecumenal, cerrando fileiras com partidos como o PP na Espanha para impor
os planos de austeridade e flertando com a extrema-direita europeia, Bento XVI
teria desagradado a esses setores ao tentar reconhecer parte dos escândalos de
pedofilia para buscar limpar a reputação da Igreja. Isso levou um colunista de
El País a avaliar que a renúncia foi resultado da pressão desses setores
ultraintegristas (MORA, 2013).
Seja
por causa das acusações de corrupção ou de pedofilia, a renúncia acrescenta uma
nota ainda mais decadente a um Papa que dedicou seu pontificado a um apostolado
de intolerância e repressão contra homossexuais, mulheres, muçulmanos e
movimentos sociais. Num momento de crescimento da extrema direita católica na
sua faceta mais fascista, como o caso do terrorista católico norueguês Breivik,
o Papado de Ratzinger foi um ponto de apoio para a homofobia, o racismo, o
sexismo, a intolerância e a perda de direitos sociais dos
trabalhadores.
É
provável que se jogue com a carta de Il Gattopardo, de Lampedusa, “mudar para
tudo continuar igual”, mas para isso, os recursos da inteligência publicitária
da Igreja podem contar com novidades, como o primeiro Papa não europeu da
história, o que não deixará de manifestar mais uma vez um dos sintomas maiores
da crise global do catolicismo, sua condição essencialmente branca e ocidental.
Um Papa negro ou latino-americano não conseguirá alterar esse fato: a Ásia e a
África permanecem imunes à religião imperial que o sistema de Estados europeu
trouxe em sua colonização global.
A
participação do Vaticano nos interesses globais do capitalismo também não deve
deixar a Igreja imune à onda de revolta anticapitalista que cresce especialmente
nas duas margens do Mediterrâneo.
A
recente aprovação pela Câmara Baixa do Parlamento francês da união matrimonial
homossexual é só mais um sintoma de que os interesses patriarcais, misóginos e
machistas do clero também estão perdendo lugar na definição da ordem legal e do
quadro dos direitos civis do século XXI.
A
última monarquia absolutista europeia, o Vaticano, sofre no gesto de renúncia
daquele que foi consagrado como o “vigário de Cristo”, ou seja, o seu
substituto, uma derrota simbólica profunda, pois demonstra falta de coragem e
obstinação em carregar uma cruz até o final. A convivência de um novo Papa com o
ex-Papa também esvazia a mística monárquica individual desse vicariato místico,
dividindo em dois, o corpo do substituto de Cristo na Terra.
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