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quarta-feira, 20 de junho de 2012

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O escritor David Grossman. "Em Israel, a palavra 'paz' soa como um termo quase obsceno"
David Grossman conhece a guerra há muito tempo. Quando nasceu, em 1954, o Estado de Israel existia havia apenas seis anos. Sua cidade natal, Jerusalém, ainda não era totalmente integrada do novo país — isso ocorreria apenas em 1967, na Guerra dos Seis Dias, quando o então adolescente Grossman viu a cidade sagrada de três religiões ser integrada à força ao resto de Israel. Mais tarde, na Guerra do Yom Kippur, em 1973, ele serviu na inteligência do Exército. Em 1982, participou da invasão israelense do Líbano. E viu de perto, numa aldeia libanesa, a face dos palestinos que a ocupação israelense transformara em refugiados. Em 2006, sentiu a violência de perto: seu filho, Uri, então comandante de um tanque no Exército israelense, morreu na ofensiva contra o mesmo Líbano. "Na noite entre sábado e domingo, às vinte para as três da madrugada, nossa campainha tocou", disse Grossman no discurso que fez no enterro do filho. "A voz no interfone disse que era o oficial municipal, e eu fui abrir pensando: 'É isso. A vida acabou'."
Felizmente, não acabou. Autor de livros como Ver: Amor (1986) e Alguém para Correr Comigo (2000), Grossman seguiu com a literatura e a militância em favor da paz. Seu mais recente livro, A Mulher Foge, conta a história de uma mulher que tenta evitar a morte do filho, tripulante de um tanque na ofensiva de Israel contra os territórios ocupados. Algo muito semelhante ao que ocorreu com ele. Ex-ator, autor de novelas, âncora de rádio e ensaísta, Grossman chega neste mês ao Brasil para o lançamento de A Mulher Foge na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Nesta entrevista, ele se recusou a tocar no tema da morte do filho, mas falou de sua crença na utilidade da literatura para refletir sobre os conflitos.
BRAVO!: No seu novo livro, a personagem central, Orah, mãe do soldado convocado para a guerra, se diz cansada da discussão sem fim sobre o conflito entre árabes e israelenses porque não há novas ideias há anos. O senhor vê novas ideias surgindo?
David Grossman: Eu não tenho certeza de que precisemos de novas ideias. A maioria dos israelenses e dos palestinos sabe exatamente o que tem que ser feito para chegarmos à paz. Estamos falando de um Estado israelense e um Estado palestino. Estamos falando de desmantelar a maioria dos assentamentos — exceto alguns grandes blocos cuja remoção é inviável, mas estes terão de ser compensados com outras terras para os palestinos. E também da divisão de Jerusalém e do fato de que os palestinos terão de parar de usar o terror contra israelenses.
Então o senhor não acredita na possibilidade de um único Estado para palestinos e judeus?
Acredito em dois países: um para os palestinos e um para os israelenses. Eu não acredito que esses dois povos, depois de tantos anos de guerra e ódio, possam viver, num futuro próximo, numa única entidade política. Talvez daqui a cem anos, se tudo for pacífico e adorável na nossa região, possamos rever essa opção. Agora, ela seria contraproducente.
Uma perda tão pessoal como foi a morte de seu filho em combate afetou sua visão sobre o conflito?
Eu não costumo falar sobre minha vida pessoal. O que posso dizer é que, depois do que aconteceu, penso de uma maneira muito mais aguda as coisas que já pensava antes.
Que papel o senhor vê para um escritor de ficção em Israel nesse cenário tão conflituoso?
O escritor pode permitir que os israelenses vejam a realidade de diferentes pontos de vista. Também do ponto de vista do outro, do palestino. Ver até a nós mesmos pelo olho de nosso inimigo. Venho escrevendo nos últimos 30 anos sobre a realidade que todo mundo conhece, mas com um novo vocabulário, pessoal e íntimo, capaz de desarmar as pessoas. Estamos tão programados a pensar sobre esse conflito usando clichês impostos pelo desespero que não temos uma linguagem para descrever a situação. Todas as vezes em que escrevi sobre o conflito com minhas palavras pessoais, eu consegui me desvencilhar do que havia me paralisado. Isso me libertou da condição de vítima. Espero que aconteça isso com algumas das pessoas que leem o que escrevo.
O historiador israelense Tom Segev diz acreditar que Israel deveria se libertar de seu passado heroico e se tornar um país normal.
Sinto que, em certo sentido, nosso passado também pode ser um ônus para nós e que nossa experiência trágica impossibilita a normalidade. Nós nos tornamos viciados em um tipo de existência de proporções épicas. Uma vida de metáfora aos olhos dos outros e aos nossos olhos. Acho que a normalidade vai permitir que exploremos muito mais nosso potencial. Fazer a paz com nossos vizinhos vai possibilitar, pela primeira vez em quase 2 mil anos, que nos tornemos normais, gozando a solidez da existência que até agora não gozamos.
O significa para o senhor escrever em hebraico, a língua em que foram escritos os livros sagrados do judaísmo? Como é ser parte de uma tradição tão antiga e venerável?
É um privilégio estar na longa corrente de eruditos e estudiosos que escreveram em hebraico. Por 1,8 mil anos o hebraico foi uma língua adormecida. Ela só era usada nas orações. Era uma língua lida, mas não falada, e nós sentimos esse hiato. Para a modernidade, ser um escritor em hebraico significa ser capaz de brincar muito com a linguagem e construir pontes sobre esse hiato.
Qual pode ser a contribuição dos intelectuais para a paz?
Lembrar as vantagens da paz. Porque as pessoas pararam de acreditar até na palavra "paz". A palavra "paz" soa, aqui em Israel, quase como um termo obsceno, fantasioso, uma coisa em que é perigoso até mesmo acreditar. Temos de dar credibilidade a essa palavra e lembrar às pessoas do que ela é feita. No sentido mais imediato e comezinho: o que significa viver assim? O que significa não ter medo de mandar seus filhos para a escola de manhã? O que significa poder mostrar curiosidade pelo seu vizinho? Por que nos privamos de aproveitar o potencial uns dos outros?
Em seu novo livro, o personagem do motorista de táxi árabe Sammy é muito interessante nesse sentido.
Eu tentei retratar a impossibilidade da vida para a minoria palestina em Israel. Sammy é um árabe israelense. Ele faz parte desse um quinto da população de Israel, cerca de 1 milhão de pessoas, que é palestino e israelense. Eu quis mostrar como é complicada e delicada essa relação entre Orah, a judia, e Sammy, o palestino. Amigos próximos, Sammy e Orah dão o melhor de si para continuar sendo humanos dentro dessa realidade que é bastante cruel e dura. Mas, em dado momento, isso fica impossível. Ambos se tornam representantes da pior parte de seus povos e, a partir daí, estão fadados ao fracasso. Eu acho que Orah e Sammy serão capazes de recuperar seu relacionamento depois que o livro acaba. Mas será uma reconciliação muito sóbria porque eles passaram por algo que expôs a ambos o lado mais escuro de suas almas.
Há uma longa tradição de relacionamento entre literatura e guerra, a maior parte dessa tradição numa veia heroica. Como a guerra entra em sua literatura?
A literatura é o contrário da guerra. Para travar uma guerra você tem de, metafórica e literalmente, obliterar a face do seu inimigo. Se você quer matar alguém, você tem de esquecer que ele é humano. Isso é a coisa básica. Há muitas coisas que você tem de pôr de lado em relação a seu inimigo para mantê-lo como seu inimigo e lutar contra. A literatura é o exato oposto. Na literatura nós selecionamos indivíduos, mesmo entre os nossos inimigos, e tentamos entendê-los em sua profundidade, em seu caráter multifacetado. Isso me faz lembrar de Stalin, que disse uma vez: "Uma morte é uma tragédia, milhões de mortes é estatística". O que estamos tentando fazer na literatura é redimir a tragédia do indivíduo das estatísticas e fazer dele um ser humano novamente.
Marcelo Musa Cavallari é jornalista.

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