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sábado, 9 de fevereiro de 2013

PORQUE O POVO JUDEU DEVE RECEBER BEM OS CONVERTIDOS

Dr. Lawrence J. Epstein
Publicado com permissão de “Judaism”, vol. 43, n°. 3 (Verão de 1994). Copyright 1994, American Jewish Congress (Congresso Judaico Americano)

O tema da conversão ao judaísmo tem se tornado proeminente nos últimos anos principalmente porque a conversão tem sido oferecida como um antídoto explícito ao casamento inter-religioso (ou misto). Qualquer que seja a eficácia que a conversão possa vir a ter em reduzir ou não o número de casamentos mistos, relacionar diretamente um tema ao outro distorce o papel crucial da conversão na teologia judaica, sua centralidade em períodos importantes da história judaica, e sua promessa de ser um componente de renovação judaica.


A importância da conversão para o judaísmo pode ser considerada uma surpresa para muitos judeus - a relutância destes em aceitar outros para a sua fé está tão embutida na sua concepção de judaísmo que se tornou parte da própria fé.


Parte do problema é de definição. “Receber bem” é usado aqui no sentido de proclamar abertamente o desejo do Povo Judeu de aceitar convertidos sinceros, aceitando-os como judeus genuínos e autênticos a partir do instante em que se convertem, e integrando-os plenamente na comunidade após a conversão. “Receber bem” exclui exercer qualquer pressão física ou emocional, enganação, suborno ou conduta invasiva para conquistar convertidos. Exclui depreciar a fé de outros, prometer recompensa eterna por se converter ou condenação eterna por não se converter. Em resumo, “receber bem” exclui especificamente as táticas utilizadas por alguns missionários não-judeus (1). “Receber bem” também exclui um entendimento do judaísmo que se recusa a oferecer o judaísmo aos não-judeus interessados, e isso cria tantos obstáculos à conversão que tais obstáculos se equivalem a uma recusa em aceitar convertidos ou a não aceitá-los como judeus plenos.


A questão do por quê uma empreitada judaica tão fundamental como receber bem os convertidos tornou-se periférica e em seguida antagônica ao que estava definido como central no judaísmo requer uma recapitulação do papel da conversão no pensamento e na história judaica. Essa recapitulação fornece o pano de fundo para uma explicação da relutância judaica em aceitar convertidos, uma relutância que teve e continua a ter um efeito profundamente negativo no destino do judaísmo e do Povo Judeu.


É reconhecidamente difícil falar de judaísmo como uma visão religiosa específica de mundo. Especialmente antes do judaísmo rabínico e após o Iluminismo, o judaísmo sempre conteve múltiplas posições intelectuais, às vezes contraditórias, que até quando entrelaçadas ainda mantiveram parte de suas distinções. Mais do que isso, as idéias no judaísmo avançam de texto em texto, e para que essas idéias sejam reconstruídas com o propósito de criar uma tese unificada, são extraídas idéias de diferentes textos produzidos em diferentes épocas. Esse processo pode facilmente resultar em uma violência às idéias e aos textos.


Apesar dessas e de outras dificuldades na interpretação do pensamento judaico, ainda é possível discernir amplamente as visões judaicas centrais no que diz respeito à conversão ao judaísmo.


Em primeiro lugar, é importante definir o local da atividade de conversão na geografia lógica do pensamento judaico.


As idéias sobre as quais o judaísmo está fundamentado são a convicção em um Deus único, a idéia de que Deus fez uma incursão na história humana para fazer uma Revelação - a Torá - e que as instruções éticas e rituais dessa Revelação - as mitzvot - são os mandamentos divinos que definem uma boa vida. A estrutura teológica construída sobre essa fundação repousa sobre essas convicções. Por exemplo, a noção revolucionária de monoteísmo conduziu à visão de que Deus não era apenas um Deus dos israelitas, mas de todo o cosmo, e portanto, de todas as pessoas. Afinal de contas, a Torá começa com a Criação, e não com a Revelação. O primeiro ser humano criado não era judeu. Um Deus assim estava preocupado com a moralidade de todos os seres humanos. Quaisquer planos divinos para a humanidade repousam na noção de que os seres humanos são parte de uma família unificada, e a mensagem espiritual que Deus quis dar não se limita apenas a algumas pessoas; é disponível e compreensível a todos.


Os judeus foram eleitos por Deus, que revelou ao Povo Judeu uma instrução moral universal destinada a toda a humanidade, não apenas aos judeus. Os judeus deveriam ser os mensageiros, levando essas instruções a todos. Em primeiro lugar, parece estranho que uma revelação universal deva ser entregue a um povo pequeno e desprovido de poder no meio de um deserto após uma fuga da escravidão. Obviamente, é essa mesma estranheza que ajuda a identificar as razões para essa escolha de Deus.


A liberdade humana requer a capacidade de optar pela descrença. Se Deus tivesse escolhido entregar uma revelação óbvia e disponível a todas as pessoas, a capacidade de escolha humana teria sido restringida; os seres humanos seriam obrigados a aceitar os preceitos morais de Deus. Caso a mensagem tivesse sido entregue a um povo poderoso, a liberdade para aceitá-la ou rejeitá-la também teria sido restringida porque teria sido difícil separar a mensagem do poder dos mensageiros. Porém, quando a Revelação foi entregue a um grupo de ex-escravos desprovidos de uma terra própria para que eles a transmitissem, essa mensagem teve que ser considerada inteiramente por si própria e os seres humanos ficaram livres para aceitá-la ou rejeitá-la pelos méritos da própria mensagem. Um deserto é o local perfeito para uma revelação divina universal porque o deserto não pertence a nenhuma nação (como esclarece a Mekhilta sobre Êxodo 19:2) (2), e assim ninguém pode reivindicar exclusividade sobre a Revelação. A noção de entregar a mensagem aos recém libertados construiu um poderoso elo psicológico e social entre o que estava contido na mensagem de Deus e o significado da liberdade — tanto nas noções de livre escolha quanto de liberdade política e econômica.


Foi no Monte Sinai que Deus fez um Pacto com o Povo Judeu. Os judeus aceitaram a Revelação de Deus, com a sua encomenda divina de apresentar essa Revelação para o mundo. Deus, em troca, faria dos judeus “um reino de sacerdotes e uma nação santa”. A idéia de um “reino de sacerdotes” foi interpretada de diversas maneiras. Obadia ben Jacob Sforno argumentou que o sentido dessa passagem é que os judeus tinham uma vocação religiosa para levar a Revelação para toda a humanidade. Tal interpretação foi adotada pelos pensadores judeus reformistas dos séculos 19 e 20, de Abraham Geiger em diante. Geiger, por exemplo, no seu livro Judische Zeitschrift und de Wissenshaft de pele Leben 2, entendia que a passagem mostrava os judeus como sacerdotes universais. Contudo, a maioria dos rabinos talmúdicos não concordava que essa frase tivesse implicações universais.


A frase, então, ecoa com posições particularistas e universalistas, como ocorre com o judaísmo como um todo. O Pacto dado por Deus é uma mistura de ambas. Os elementos universalistas provêm o conteúdo central da mensagem que o Povo Judeu deveria levar para a humanidade. O perigo de se concentrar apenas na posição universalista está em ignorar as contribuições específicas que a posição particularista exerce no cumprimento da missão universal, como separar as convicções, a moralidade e o modo de vida judaicos de um conjunto mais generalizado de crenças, moralidade e modos de vida.


Os elementos particularistas também têm um papel vital. Eles existem para impedir que os judeus sacrifiquem a sua religião em nome de qualquer outra religião ou ideologia religiosa majoritária e servem como uma cerca ao redor dos ensinamentos sagrados que devem ser transmitidos. As particularidades obrigaram os judeus a ser um povo em separado para não permitir que a sua mensagem divina fosse subjugada pelas culturas mais fortes que os cercavam. O perigo de se concentrar somente nas posições particularistas está em interpretar a eleição do Povo Judeu como a insinuação de algum senso de superioridade em vez daquilo que essa eleição realmente implicava: um povo eleito para cumprir uma missão voltada para todos.


Além disso, as particularidades foram saudáveis ao impedir que o Povo Judeu desenvolvesse um senso de superioridade religiosa por ter sido o povo que recebeu a mensagem divina. Essa separação também limitou a maneira de se entregar a mensagem. Um povo à parte não poderia impor a sua religião aos demais. Um povo à parte não poderia se tornar um povo religiosamente imperialista. A implicação ética aqui é clara: embora a missão judaica fosse levar a mensagem universal de Deus para toda a humanidade, os judeus só podiam oferecer a mensagem, mas não impor sua aceitação. Os judeus deviam levar “uma luz para as nações”. Eles podiam oferecer o judaísmo e receber bem aqueles que aceitassem a mensagem, pessoas que escolhessem ser escolhidas, pessoas que se tornavam judias. Essas pessoas, que vinham livremente para o judaísmo, sem temerem pela sua salvação (3), eram acolhidas.


A separação tem outra implicação importante, destacada explicitamente na literatura judaica: a salvação é universal; depende de uma boa conduta moral e não de aceitar o judaísmo. Os justos de todas as crença têm a mesma chance de serem salvos. O judaísmo jamais foi triunfalista; sempre pediu que se servisse a Deus e não que os não-judeus ou religões não-judaicas desaparecessem. A visão do judaísmo não é que todos devem se tornar judeus. A conversão deve estar disponível, mas não deve ser imposta. Fica claro que essa visão, embora prejudique o potencial para o ativismo proselitista, foi valioso em definir os limites da missão judaica.


Tal missão consistia em que, num sentido particularista, o próprio Povo Judeu obedecesse o Pacto escrupulosamente e ao mesmo tempo como um modelo moral; e num sentido universalista, levasse a Revelação para toda a humanidade.


Os judeus deveriam ser testemunhas ativas em favor de suas convicções. A base para essa atividade deriva de uma série de fontes. A Revelação Divina de Deus foi em si um ato ativo de oferecer o judaísmo, de Deus compartilhando uma crença.


Os judeus também viram os impulsos missionários nas ações dos seus fundadores. A viagem de Abrahão de Harán para Canaã com as “almas” de quem ele adquirira foi interpretado pelos rabinos com o sentido de que Abrahão havia feito convertidos. Em Sifre Deuteronômio 313 (4), (sobre Deuteronômio 32:10), Abrahão é descrito como um missionário tão bem-sucedido que D’us se tornou conhecido como o Rei da Terra e como o Rei dos Céus. Em Gênesis Rabá 39:21 (5) Abrahão também é considerado um missionário. Em Avot de-Rabi Natan, 23a, os judeus são urgidos a levar as pessoas “sob as asas da Shechiná (Presença Divina)” exatamente como fez Abrahão. A palavra “convertido” é usada livremente quando se refere aos esforços de Abrahão, que convidava os não-israelitas a se unir aos israelitas; e levou um bom tempo para emergir a noção formal de conversão. Podemos encontrar muitos outros exemplos de esforços missionários feitos pelos fundadores do judaísmo na literatura agádica (6), como em Midrash Hagadol, 397. Por exemplo, Rabi Hoshaya acreditava que Isaac buscava convertidos. Considera-se que Jacob tenha feito o mesmo (veja em Gênesis Rabá 84:4). Rabi Shmuel ben Nachman acreditava que José não distribuía comida aos egípcios a não ser que eles fossem circuncidados (veja em Gênesis Rabá 90:6 e 91:5). Moisés expôs a Torá em setenta idiomas, de acordo com um midrash, porque a Torá deveria ser ouvida e abraçada por todos os seres humanos. Diversas fontes (talmúdicas), tais como Êxodo Rabá 1:29, destacam que antes de matar o mestre de obras egípcio, Moisés previu que não haveria um único convertido entre os descendentes desse egípcio; foi essa percepção que justificou a morte.


A atitude positiva nas fontes rabínicas quanto a buscar convertidos forneceu outra justificativa para oferecer o judaísmo. A atitude rabínica favorável em relação a aceitar convertidos estava baseada nas atitudes desenvolvidas na Torá e pelos profetas. A Torá inclui inúmeras exigências ao Povo Judeu para receber bem os estrangeiros. A visão profética da lei universal de Deus e da instrução vinda de Tsión foi declarada mais eloqüentemente em Isaías 2 (por exemplo em Isaías 42:6-7). (7)


A passagem talmúdica mais conhecida (Pessachim 87b) que elogia especificamente o trabalho de buscar convertidos é do proeminente Rabi Iochanan, com o qual concordou Rabi Eleazar ben Pedat, onde se afirma que Deus exilou os judeus da sua terra natal por uma única razão: aumentar o número de convertidos. É uma noção particularmente notável que um evento tão traumático como o exílio nacional possa ser visto como detentor de um uso divino. Esse uso deve ter sido considerado tão valioso que justificou o exílio da Terra Prometida.


O imperativo para a missão também pode ser visto nos esforços históricos (não-bíblicos) para aceitar os convertidos. Esses esforços incluíram: (1) criar literatura como os Oráculos Sibilinos, Josefus Contra Apionem, Apologia de hyper Ioudaion de Philo, a Carta de Aristéias, Joseph e Aseneth e muito mais, que às vezes eram utilizados para propósitos missionários; (2) abrir as sinagogas para convidados e visitantes interessados. Há uma referência em Philo (De Septinario, 6) para “milhares de casas de instrução em todas as cidades”, uma provável referência às muitas sinagogas que serviam como centro de aprendizado para não-judeus; (3) abordar pessoalmente os potenciais candidatos à conversão, tais como o viajante Eleazar, citado em Josefus, Antiguidades 20. 43, que era ativo em Adiabene, um pequeno reino pequeno no Rio Tigre no qual o Príncipe Regente, Izates, a Rainha Mãe, e talvez muitos outros, foram convertidos; (4) assimilar os não-judeus que vivem entre os judeus, incluindo, de acordo com Philo, muitas crianças abandonadas por suas famílias não-judias; e (5) pelo casamento de um judeu com um não-judeu. Esses esforços eram deliberadamente não invasivos. Eles jamais incluíram a depreciação das crenças alheias ou a criação de uma grande ocupação exclusivamente com fins missionários.


A missão judaica também foi considerada justificada pela Lei judaica. A própria existência de leis relativas à conversão foi vista como uma forma de oferecer tal possibilidade. Por que então codificar leis se o judaísmo não quisesse convertidos? A existência dessas leis judaicas indica que é a conversão ao judaísmo é permitida, que os convertidos são bem-vindos e que há ritos específicos que devem ser cumpridos para que ocorra a conversão. Não está claro quando essas regras legais foram precisamente desenvolvidas. Pode ter acontecido no período do Segundo Templo ou após a sua destruição. Certamente após a destruição do Segundo Templo houve uma necessidade crescente por regras religiosas claras que mantivessem uma identidade judaica protegida dos efeitos unificadores de uma nacionalidade comum (com outros povos), de modo que elas foram estabelecidas no máximo por volta dos anos 400 – 500 da Era Comum.


Finalmente, os judeus viam a sua missão como algo dinâmico que culminaria com a redenção da História, como parte da lógica e do amor divinos que levariam a História a alcançar a sua meta. A lógica da visão mundial judaica exigia a missão. D’us é universal, a humanidade deve ser manter unida, a Torá revelada por D’us é uma dádiva divina para toda a humanidade, o Povo Judeu foi escolhido para receber a revelação e carregar junto com o Pacto os seus ensinamentos, entre os quais estava tornar a mensagem universal de D’us disponível a todos, de modo que, com a sua aceitação, a humanidade pudesse ser redimida.


A missão universalista foi desafiada pelos particularistas, que defendiam um pacto diferenciado para os judeus e uma aliança em separado para o resto de humanidade. De acordo com essa visão, os não-judeus eram obrigados a seguir o código moral entregue a Noé, e a missão judaica seria ensinar a eles as “leis de Noé”. As leis de Noé ordenavam que todas as pessoas se afastassem da idolatria, do incesto, do adultério, da matança, de profanar o nome de D’us, da injustiça (pelo ato positivo de estabelecer cortes judiciais) e do roubo, bem como de atos cruéis tais como remover um membro de um animal vivo.


Todavia, uma visão assim não preenche as obrigações do Pacto que são exigidas do Povo Judeu. O fato de que, em princípio, todo não-judeu poderia ser tornar judeu significa que obedecer às leis de Noé simplesmente não é a meta espiritual mais elevada à disposição dos não-judeus. De qualquer modo, mesmo que os judeus acreditassem que a sua missão se limitava a ensinar as leis de Noé, essa missão raramente foi empreendida.


Por todas essas razões, a missão judaica de buscar convertidos foi traduzida em ação concreta durante importantes períodos da história judaica.


Conforme destacado por Salo Baron (veja em “População”, Enciclopédia Judaica 13, 1971, col. 869), os judeus cresceram de 150.000 entre 586 A.E.C (Antes da Era Comum) para mais de 8 milhões no século 1 E.C.. Esse crescimento pode ser explicado pela suposição de que os judeus receberam ativamente grandes números de convertidos, principalmente pelas atividades descritas acima, mas também por força de dois casos incomuns: a conversão dos idumeus (veja Josefus, Antiguidades 13. 257-258) e dos itureus (veja Josefus, Antiguidades 13.319).


A idéia de que os judeus buscavam convertidos ativamente é sustentada não apenas pela demografia, mas pelos comentários hostis de autores gregos, romanos e cristãos acerca das tentativas dos judeus de conquistar convertidos. Em Roma, por exemplo, Tacitus, historiador retórico, Cícero, advogado, e Juvenal, um satírico, são amargos e graves em denunciar atividades proselitistas judaicas. Horácio (em Sátiras 1.4 142-143) ironiza os esforços proselitistas judaicos. Naturalmente, o mais famoso comentário cristão está em Mateus 23:15, onde pode ser vista a seriedade da concorrência judaica por convertidos: “Ai de vós, escribas e fariseus, seus hipócritas! Vós percorreis o mar e a terra para fazer um único prosélito; e depois de o terdes feito, o tornais duas vezes mais filho do inferno do que vós”.


Eles tinham toda razão, do ponto de vista deles, para estar preocupados. No início da era cristã, 10% do Império Romano era formado por judeus, de acordo com Salo Baron (em sua “História Social e Religiosa dos Judeus”, volume 1, pp. 370-372). De fato é intrigante imaginar como a história poderia ter sido diferente. Se romanos e judeus não tivessem lutado, se os romanos não tivessem destruído o Templo em 70 EC, esmagado a rebelião de Bar Cochbá em 135 EC e por fim expulsado os judeus de Jerusalém, os esforços para conquistar convertidos teriam aumentado. É razoável ponderar que se Roma e Jerusalém não tivessem lutado amargamente até o fim, os romanos teriam escolhido o judaísmo, não o cristianismo, e mudado para sempre o curso da história. Todavia, o judaísmo ficou associado então com a Judéia rebelde, odiada e finalmente derrotada, e Constantino converteu-se ao cristianismo, concedendo ao Ocidente um caráter cristão e não judaico.


A história do exílio dos judeus após a perda do Segundo Templo ilustrou os perigos do poder perdido. Uma parte dessa paradigmaticamente trágica história tinha a ver com os esforços dos judeus em conquistar convertidos.


Embora esses esforços continuassem, os judeus sem pátria e sem poder foram restringidos pelas leis romanas — e mais tarde cristãs e muçulmanas — relativas ao proselitismo. Por exemplo, Domitiano ordenou que os convertidos fossem enviados ao exílio e condenados à morte. Em 131 EC Hadriano proibiu a circuncisão e a instrução pública da religião judaica. Em 198/199 o Imperador Severo promulgou leis que proibiam não-judeus de abraçar o judaísmo. Em 335 Constantino restabeleceu a lei de Hadriano, proibindo judeus de circuncidar seus escravos não-judeus. Há muitos outros exemplos de tais restrições, indicando tanto a existência de esforços ativos para conversões ao judaísmo quanto a preocupação que esses esforços geraram.


Porém, com o passar do tempo a atitude judaica em relação ao convertido mudou (isso não quer dizer que a atitude sempre foi uniformemente positiva. Há muitas referências, tais como o famoso comentário de Rabi Helbo — Talmud, Yevamot 47b e em outros lugares — de que “prosélitos são tão prejudiciais para Israel quanto uma ferida”. Houve, ao longo da história judaica, particularistas que se opunham a receber convertidos). Gradativamente as mudanças inverteram a atitude judaica geral de receber bem os convertidos: aquela que já fora considerada uma obrigação pactual tornou-se uma atividade negligenciada, ironicamente considerada não-judaica. Os judeus tornaram-se relutantes em buscar convertidos. Houve muitas razões para essa transformação radical.


A primeira razão para essa mudança de atitude em relação à aceitação dos convertidos é, naturalmente, a perseguição por autoridades não-judias. Tanto os convertidos quanto a comunidade judaica eram punidos por tal atividade. A comunidade judaica, impotente, adotou a prudente decisão de reduzir essas atividades. Obviamente, a própria incapacidade e o status minoritário característico dos judeus acrescentaram razões mais sutis para a mudança do que os elementos racionais inerentes em se tomar uma decisão comunitária preventiva. O status minoritário produziu profundas mudanças psicológicas que resultaram, entre outros efeitos negativos, em uma perda de auto-estima que arruinou o impulso de oferecer o judaísmo para o mundo.


Finalmente, a comunidade judaica buscou uma justificativa para explicar o seu fracasso em cumprir essa mitzvá, para explicar sua existência obscura e para oferecer alguma esperança de escapar de sua existência. Essa justificativa foi encontrada na interpretação particularista da teologia judaica, de que a missão judaica estaria limitada simplesmente a seguir as leis religiosas e esperar pelo Messias. A utilidade dessa visão estava óbvia não apenas para a sobrevivência e justificativa de mudança na missão judaica, mas por oferecer uma esperança por um futuro judaico melhor nos tempos messiânicos.


Os cristãos assumiram a missão judaica de aceitar convertidos e transformaram o seu significado. Buscar convertidos tornou-se uma atividade obrigatória, pois a salvação não poderia acontecer fora da Igreja. Invasões, suborno, ameaças, e finalmente violência e assassinato foram tolerados por um cristianismo em expansão. Além disso, os cristãos relaxaram as normas judaicas de conversão, como a necessidade para circuncisão dos homens e a obrigação de obedecer as leis judaicas, tornando muito mais fácil a um pagão converter-se ao cristianismo do que ao judaísmo. Por fim, desenvolveu-se uma inimizade entre os cristãos triunfantes e os judeus decadentes. Por todas essas razões os judeus passaram a desconfiar da atividade de conversão. Seu significado original havia sido sido distorcido: os potenciais convertidos poderiam desertar, vendo o cristianismo como uma rota mais fácil. Assim, os judeus cada vez mais passaram a ver os não-judeus como inimigos e não mais como um grupo cujos membros queriam se converter ou seriam bem aceitos mesmo que escolhessem livremente por isso (converter-se ao judaísmo). Tornou-se mais impalatável oferecer o judaísmo às mesmas pessoas que menosprezam, perseguiam, convertiam à força e matavam judeus. A idéia de receber convertidos sob tais condições tornara-se repugnante. Do ponto de vista não-judeu, os judeus eram vistos como culpados de deicídio (assassinos do deus-filho dos cristãos) e como um povo disperso, fraco, digno de pena, zombaria e perseguição, jamais de adesão.


O destino do papel da conversão dentro da lei judaica também refletiu uma mudança significativa nos pontos de vista judaicos. Os comentaristas da lei judaica estavam centrados na França e na Alemanha, entre os quais estavam pensadores como Rashi e os Tossafistas. Os Tossafistas argumentavam que a lei judaica exige a aceitação dos convertidos. Eles viam a busca de convertidos como uma norma para os judeus. Além dos comentaristas, outro grupo de mestres judeus eram os legisladores, que se concentravam em classificar a lei. Maimônides foi o mais famoso dos legisladores. Em geral, estes eram mais restritivos em suas atitudes em favor de aceitar convertidos.


Para terminar com a confusão nas decisões alternadas entre esses dois grupos de mestres em uma série de assuntos, houve esforços para produzir um código de lei judaica que pudesse refletir ambos os sistemas jurídicos. No final das contas, o código que prevaleceu foi o Shulchan Aruch de Josef Caro, suplementado por notas de Moshé Isserles. Em parte o Shulchan Aruch tornou-se um texto de autoridade porque foi o primeiro código produzido depois que a imprensa foi inventada, o que fez com que fosse rápida e amplamente distribuído pelo mundo judaico. De qualquer modo, o Código levou a uma visão mais restritiva em sua descrição muito breve da questão da conversão em Yoreh Deah, capítulos 268-269. Embora Caro pareça ativamente contrário ao proselitismo, ele apresenta as leis mais favoravelmente do que a escola espanhola e inclui algumas opiniões de Tossafistas, e não cita Rabi Helbo. Em um certo ponto, Caro considera que os potenciais convertidos devem ser informados de que todas as nações idólatras perecerão, mas que Israel sobreviverá e o judaísmo se tornará a única religião (Caro cita Yevamot 47a). Embora Caro seja mais solícito do que alguns dos legisladores, a aparente oposição à aceitação ativa (de convertidos) contribuiu para a mudança judaica de atitude no que diz respeito a essa aceitação (mudança que já havia começado muito antes), e para a derrocada da interpretação Tossafista de tal aceitação como uma lei divina, uma mitzvá. Essa mudança foi mais do que cosmética. Uma obrigação divina foi tornada independente das conseqüências. Sem esse mandamento, os judeus ficaram livres para ignorar a aceitação de convertidos.


Esse desenvolvimento na lei judaica fundamentou a oposição à conversão, que já havia sido construída graças a outras razões acima mencionadas. A perseguição e o medo conduziram, com o passar do tempo, à transformação da compreensão judaica: da sua missão como divulgadora da palavra de Deus para uma posição de denunciar essa missão como não de acordo com a lei judaica. A não-atividade missionária tornou-se a norma enquanto os judeus sofriam o exílio da sua terra natal e aguardavam pelo Messias. O povo judeu recusava-se a entregar a sua mensagem a outros lares que não os seus.


O judaísmo contemporâneo herdou essa compreensão transformada da missão judaica. Porém, há uma série de razões históricas do porquê a idéia original de buscar convertidos pode voltar a ser aceita novamente.


A perda da soberania nacional, com sua fraqueza concomitante e perda de autoconfiança, além da percepção por outros de que os judeus haviam sido vencidos pela história, eram razões centrais para a transformação da compreensão judaica da sua obrigação pactual. Porém, agora Israel voltou à história. A soberania nacional está restabelecida.


Por muitos séculos um trabalho missionário judaico poderia ser considerado perigoso às vidas judias; esse não é mais o caso.


Houve um tempo em que os religiosos judeus pareciam claramente invencíveis; hoje em dia, a competição pela alma humana está aberta, com visões não-religiosas participando ativamente da disputa. Ao mesmo tempo, raramente houve momentos em que uma visão judaica de mundo foi tão amplamente necessária. Há um desejo genuíno de aprender sobre judaísmo. Há atualmente cerca de 200 mil (7) convertidos ao judaísmo nos Estados Unidos. Milhares das pessoas se tornam judias todos os anos, em boa parte graças a uma relação afetiva com um parceiro judeu. Sem dúvida muito mais gente seria atraída ao judaísmo se conhecessem as convicções e disponibilidade do judaísmo. Enquanto muitos intérpretes da lei judaica entendiam que o trabalho missionário deveria ser restrito, hoje pode se levantar o debate se a lei permite aos judeus voltar e retomar a obrigação pactual original.


Apesar do fato de que as condições favorecem o reavivamento do trabalho missionário judaico, os judeus americanos parecem ser candidatos improváveis para conduzir tal processo. Isso devido a uma série de razões, como as diversas noções discrepantes do que é judaísmo ou uma percepção de que oferecer o judaísmo é uma invasão à privacidade de terceiros.


Certamente é verdade que o judaísmo é, por assim dizer, sujeito a várias interpretações. Além disso, há convicções centrais e singulares que a maioria dos judeus pode aceitar. Elas incluem: (1) Enfatizar ações em vez da aceitação de uma ideologia particular; (2) a visão de que o pecado não é inerente, mas que os indivíduos têm liberdade moral para escolher entre o certo e o errado; (3) valores básicos, como a centralidade da família, a visão de que o aprendizado é uma forma de serviço religioso, e que o centro da atividade religiosa é fazer boas ações; (4) identificação com a história judaica e com o povo judeu; e, obviamente, (5) a Unicidade de Deus em contraposição, por exemplo, ao trinitarianismo ou qualquer outra interpretação do monoteísmo.


A preocupação justificável em não invadir o espaço alheio ajudará a manter condutas aceitáveis (como oferecer aulas, livros e outros materiais, apresentações de mídia, o uso de anúncios, salas de leitura, e assim por diante) e a não adotar práticas discutíveis ou inaceitáveis (como ir de porta em porta na busca de candidatos potenciais à conversão, parar as pessoas nos aeroportos, na rua ou em outros lugares públicos, e assim por diante).


A escolha de reintroduzir uma conduta pró-ativa em favor de novas conversões ao judaísmo precisa ser colocada ao lado de todas as escolhas acessíveis aos judeus. Os judeus podem continuar como têm feito e transformar a definição de ser judeu de uma definição espiritual para uma focada na participação comunitária ou em associações emocionais por meio do humor judaico, culinária, judeus famosos, ou um sentimento mais generalizado de simplesmente ser judeu. Contudo, é justamente essa transformação que tem conduzido ao avanço da assimilação. Os judeus podem se assimilar passiva ou ativamente, como muitos estão fazendo, mas uma grande parte permanece determinada a manter a sua identidade judaica. Esses podem se mudar para Israel, mas a maioria não deseja isso. Esses podem se auto-segregar, mas a maioria dos judeus americanos gosta e deseja continuar a participar da vida norte-americana. Eles podem tentar praticar o judaísmo tradicional e seguir aqueles judeus que se assimilam, mas tais esforços inevitavelmente encolherão a comunidade judaica americana até que os judeus se tornam os Amishes do século 21.


Há ainda uma outra escolha. O judaísmo americano pode manter uma conexão com as tradições e ao mesmo tempo oferecer o judaísmo, tanto para judeus afastados quanto para não-judeus. Esses esforços para ensinar outros, coerentes com as obrigações judaicas pactuadas no Sinai, evidentes na história judaica, são cada vez mais necessários em nossa época e podem revitalizar o judaísmo americano.


Os judeus americanos são ambivalentes a respeito de suas próprias vidas espirituais. Um grupo pragmático, gerado por antepassados que transbordam de uma convicção socialista e um desejo de se livrarem da religião que herdaram, os judeus americanos estão em geral numa posição incômoda no que tange à questão espiritual. Porém, o ato de oferecer até mesmo um judaísmo sustentado com essa ambivalência forçará os judeus americanos às atitudes intelectualmente válidas de confrontar e definir suas identidades religiosas. Os professores aprenderão tanto quanto os estudantes.


Isso não quer dizer que não há perigos nesse esforço de receber bem os convertidos. Há a possibilidade, que deve ser enfrentada, de que a aceitação de convertidos venha a exacerbar divisões dentro do judaísmo entre aqueles que vivem e os que não vivem pela Halachá. A realidade é que a maioria dos convertidos não se converte de acordo com os padrões haláchicos necessários para serem considerados judeus por muitos dentro da comunidade ortodoxa. Todavia, como todos os judeus reconhecem a possibilidade de conversão legítima ao judaísmo, o tema envolve quem está fazendo a conversão e suas exigências em vez do próprio ato existencial de se converter. Assim sendo, e como os argumentos são internos à comunidade e independentes das visões de qualquer força externa, resta a esperança de que, em termos haláchicos legítimos, sejam encontrados alguns meios para superar essas divisões. Ver a aceitação como algo coerente com a tradição judaica é um começo útil para uma busca honesta em direção a uma solução para esse problema. No entanto, é importante notar que se receber bem os convertidos é uma obrigação judaica, e o fato de que isso traz dificuldades não é razão suficiente para deixar de recebê-los bem. Esses esforços obrigatórios, embutidos no pensamento judaico e praticados na história judaica, precisam ser revividos não apenas porque são obrigatórios, mas também porque são práticos. Em vez das chamas do judaísmo americano se apagarem, é possível reacendê-las e fazê-las brilhar, de modo que o povo judeu retome o seu legítimo papel histórico como uma luz entre as nações.


Notas do tradutor
(1) Entre esses missionários cristãos e suas táticas para converter judeus ao cristianismo estão incluídos claramente os missionários cristãos que se passam por “judeus messiânicos”, “Jews for Jesus”, “judeus nazarenos” e correlatos. (NT)
(2) Mekhilta (ou Mechilta) sobre Êxodo: texto talmúdico que amplia e interpreta o que está contido no Livro do Êxodo. (NT)
(3) Sem temerem pela sua salvação: ou seja, sem ter medo que, ao deixar a sua religião original e se converter ao judaísmo, não seriam salvas ou estariam condenadas a algum tipo de inferno após a morte. (NT)
(4) Sifre de Deuteronômio: texto talmúdico que amplia e interpreta o que está contido no Livro de Deuteronômio. (NT)
(5) Gênesis Rabá: texto talmúdico que amplia e interpreta o que está contido no Livro de Gênesis. (NT)
(6) Literatura agádica: baseada na Agadá (plural: agadót), histórias contadas pelos sábios do Talmud para explicar certos conceitos ou situações. (NT)
(7) Nos EUA, dada a média de 10 mil convertidos ao ano, hoje (2005) estima-se que há 300 mil judeus americanos por opção. (NT)
(7) “Eu Sou o Eterno que em integridade Te escolheu; tua mão hei de fortalecer e sempre Te protegerei; Te transformarei em um convênio para todos os povos e em uma luz para as nações; 7 para iluminar os cegos, libertar os prisioneiros, retirar de seu cárcere os que habitam na escuridão” (Isaías 42:6-7). (NT)

Créditos:
Texto adaptado do site em inglês www.convert.org com a permissão de Barbara Shair
Tradução: Uri Lam
Edição: Adriana Lacerda

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