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segunda-feira, 3 de setembro de 2012



Caminhos da memória

Elaine Eiger e Luize Valente / Especial para ASA

Em setembro de 2000 embarcamos para Portugal com o intuito de produzir um documentário que mostrasse os resquícios da presença judaica no país de nossos colonizadores. A Inquisição (Espanha/1492, Portugal/1497) faz parte do currículo escolar, mas pouco sabemos do destino que tiveram os judeus que escaparam das fogueiras do Santo Ofício. Diferentemente do que ocorreu na Espanha, que os expulsou ou onde foram dizimados em 60 anos, em Portugal os judeus foram submetidos à conversão forçada em 1497, sendo obrigados a abraçar a religião católica. Daí a origem do termo cristão-novo, tão popular no Brasil. Lá permaneceram até 1536 (ano do estabelecimento oficial do Tribunal do Santo Ofício), quando deixaram o país definitivamente, após um período repleto de massacres e perseguições. No século 16, 10% da população de Portugal chegou a ser de origem judaica - cerca de 100 mil judeus para uma população de um milhão de portugueses! Para se ter uma idéia, hoje, 500 anos depois, vivem em Portugal 3 mil judeus para uma população de 10 milhões de habitantes.

Os judeus eram figuras eminentes nos campos da medicina, ciências, astronomia, comércio. Eram conselheiros da nobreza nos assuntos financeiros, inventores de instrumentos de navegação, financiadores de expedições. Assim não interessava a Portugal economicamente ver-se livre da "Gente da Nação", como eram conhecidos.

Aqueles que secretamente continuaram em suas casas praticando a religião judaica ficaram conhecidos como marranos ou criptojudeus. Porém, milhares de convertidos abraçaram a fé católica, tornando-se realmente cristãos. No entanto, isso não foi suficiente para escaparem das garras dos inquisidores. Durante os quase três séculos de perseguições - a Inquisição só foi abolida em 1821 - o Santo Ofício condenou como judaizantes verdadeiros convertidos. Daí nasce o questionamento do real propósito da conversão, posto que, depois de três ou quatro gerações, uma família que tivesse realmente se tornado católica poderia ser dizimada devido a uma denúncia - muitas vezes infundada - de suposta prática judaica.

A historiadora Anita Novinsky, considerada uma das maiores especialistas mundiais em Inquisição Portuguesa e uma pioneira no estudo dos cristãos-novos no Brasil, costuma colocar a Inquisição como a precursora do anti-semitismo moderno, e de seu expoente máximo, o nazismo. Mais de quatrocentos anos antes de Hitler, os portugueses precisavam comprovar até a oitava geração que não tinham sangue judeu na família quando acusados de seguir a Lei de Moisés. Na Alemanha nazista, exigia-se provar que não havia um judeu na ascendência até a quinta geração. Essa é apenas uma da várias semelhanças entre Inquisição e nazismo, um tema que nos levaria por muitas páginas. Então, voltemos ao nosso assunto!

O documentário faz um percurso por todo o território português - entramos pelo Algarve, no sul, e saímos pelo Minho, no norte - mostrando locais e curiosidades. Passados mais de quinhentos anos, os resquícios da herança judaica estão presentes em mais lugares do que se supõe. No entanto, é preciso atenção para perceber as marcas da História...

Quanto mais nos aproximamos da fronteira com a Espanha, mais indícios encontramos dos judeus que habitaram Portugal. Uma arquitetura medieval, de vilas cercadas por muralhas, guarda os vestígios de importantes comunidades judaicas. Évora, Nisa , Alpalhão, Porto Alegre, Castelo de Vide, Marvão . O legado judaico é inegavelmente parte do patrimônio cultural do país. Referências que resistiram ao calor das fogueiras permanecem nos nomes de ruas e bairros , nos umbrais das portas.

Um olhar minucioso identifica as ranhuras onde um dia repousaram mezuzot que guardavam os lares judaicos. Foram arrancadas. A conversão forçada obrigou os judeus a deixarem outra marca em suas portas ...cruzes gravadas na pedra.

Outra curiosidade é a culinária: a alheira, famosa lingüiça portuguesa feita com carne de galinha e miolo de pão, foi criada pelos conversos que mantiveram a tradição judaica secretamente. As lingüiças eram penduradas na porta de casa para que se pensasse que ali se comia carne de porco! O fenômeno do marranismo tornou-se um caso único no judaísmo. As tradições eram passadas oralmente pelas mulheres, as rezas, adaptadas e os judeus, batizados. Tinham santos (Santa Esther e São Moisés) e acendiam as velas de Shabat dentro de armários para que não fossem vistas. Os marranos portugueses - concentrados principalmente na aldeia de Belmonte, norte de Portugal - e terra natal de Pedro Álvares Cabral - só foram identificados na década de 1920 por um judeu polonês que foi morar em Portugal. O engenheiro de minas Samuel Schwarz revelou ao mundo a existência desta comunidade secreta de judeus. Os marranos ainda viviam em comunidade fechada, mesmo com o fim da Inquisição, e não sabiam que era o judaísmo a religião que seguiam! Depois de Schwarz , Belmonte recebeu a visita de vários estudiosos e em 1993 a cidade ganhou uma sinagoga tradicional , dirigida por um rabino vindo de Israel. Foi inaugurado também um cemitério judaico. Outra curiosidade em Belmonte é o antigo cemitério, onde encontramos lado a lado túmulos judaicos e cristãos.

Rodamos Portugal num trabalho de garimpo mesmo. Contamos com a orientação da arqueóloga portuguesa Carmem Balesteros, que nos levou às escavações de sinagogas medievais, como a de Castelo de Vide e a de Valencia de Alcantara, esta última cidade já em território espanhol. A arqueóloga, professora da Universidade de Évora, é a maior autoridade em Portugal em arqueologia judaica. Estas sinagogas haviam sido transformadas em igrejas, depois em armazéns ou depósitos, e só no século 20 foram sendo "reconhecidas" como locais originariamente judaicos. A Cidade de Tomar, sede do Castelo da Ordem dos Templários, também possui uma sinagoga medieval. Carmem Balesteros nos conta que durante suas pesquisas de campo ouvia falar sobre locais onde teriam funcionado "Iglesias de los judios". Essa é uma das pistas que segue em suas expedições. Uma característica das sinagogas sefaraditas, mais especificamente as portuguesas, é que são construídas sobre quatro colunas em homenagem às quatro matriarcas de Israel: Sara , Rebeca , Raquel e Lia.

O documentário feito com câmera na mão procura transmitir a idéia de trajetória marcada no título: "Caminhos da Memória". Foi sonorizado com música ladina, tradicional dos judeus da Península Ibérica. O grupo carioca Longa Florata compôs a trilha utilizando réplicas de instrumentos medievais.

Procuramos mostrar uma história de Portugal pouco divulgada até para os portugueses. Um resgate de memória que permanece por mais de cinco séculos nas ruínas, nos costumes, nos nomes de ruas e praças, mas que é pouco associado à origem judaica.

Milhares de portugueses que chegaram nas primeiras caravelas já no Descobrimento eram judeus convertidos. O Brasil transformou-se num destino sinônimo de salvação. Para cá vieram tanto suspeitos em fuga quanto condenados. Em muitos casos a pena imposta pelo Santo Ofício era a extradição para a nova colônia. Trouxeram na bagagem costumes judaicos que foram incorporados à cultura brasileira e hoje ainda são praticados, na grande maioria, sem vínculo com a religião. Segundo a professora Anita Novinsky , um terço dos portugueses que aqui chegaram eram cristãos-novos, ou seja, judeus conversos e seus descendentes .

Muitos sobrenomes comuns no Brasil, como Silva, Cardoso, Oliveira, Pereira, Nunes, Mendes, Azevedo, Lopes, são sobrenomes de cristãos-novos. Nosso próximo passo é continuar este trabalho no Brasil através do resgate de costumes e tradições presentes nos dias de hoje e que têm sua origem na cultura judaica.

Interessa-nos apresentar a genealogia do brasileiro descendente dos cristãos-novos que, depois de cinco séculos de Brasil, assimilou-se totalmente, porém incorporando à cultura brasileira parte de sua inconsciente herança judaica. Em outras palavras, queremos mostrar as raízes judaicas do povo brasileiro, raízes que podem ser apontadas como fundamentais na formação étnica do povo brasileiro.

Queremos mostrar que alguns legados marcantes da nossa cultura, principalmente no Nordeste, como acender velas para os anjos, circuncidar os meninos ao nascer, enterrar os corpos em mortalhas, retirar o sangue dos animais abatidos, não comer carne de porco e fazer faxina às sextas-feiras, têm sua origem nas práticas dos cristãos-novos que chegaram por aqui há 500 anos.

Nada melhor para encerrar este texto do que o conceito do "homem dividido" exposto pela professora Anita Novinsky em seus primeiros estudos sobre os cristãos-novos no Brasil:

"O cristão-novo encontra-se num mundo ao qual não pertence. Não aceita o catolicismo, não se integra no judaísmo do qual está afastado há quase dez gerações (no século 17). É considerado judeu pelos cristãos e cristão pelos judeus(...). Põe em dúvida os dogmas da religião católica e a moral que esta impõe. Internamente é um homem dividido, rompido, que, para se equilibrar , se apóia no mito de honra que herdou da sociedade ibérica e que se reflete na freqüência com que repete que "não trocaria todas as honras do mundo para deixar de ser cristão novo". Exatamente nisso se exprime a essência do que ele é : nem judeu, nem cristão, mas "cristão-novo com a Graça de Deus" (Cristãos-Novos na Bahia - Ed. Perspectiva , 1972).


* Elaine Eiger é fotógrafa e Luize Parente, jornalista. Em 2000, produziram e lançaram o livro de fotos e textos Israel Rotas e Raízes.

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