Uma visão sem preconceitos da
relação dos judeus com o dinheiro
Marilia Pacheco Fiorillo
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Os fundadores da religião monoteísta foram também os pioneiros do espírito capitalista – essa é a tese de Jacques Attali em Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo (tradução de Joana Angélica d'Avila Melo; Futura; 646 páginas; 78 reais). Judeu franco-argelino, Attali foi por dez anos conselheiro do presidente francês François Mitterrand, fundou o Banco Europeu pela Reconstrução e Desenvolvimento e a PlaNet Finance, ONG de captação de microcréditos para países pobres. Polivalente, entre seus trinta livros há ensaios, biografias, romances e até uma peça em parceria com o ator Gérard Depardieu. No prefácio a Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo, o presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, rabino Henry Sobel, confessa que chegou a temer que o livro municiasse o anti-semitismo que associa a imagem da comunidade à ganância – vide o judeu Shylock, de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, que chega ao cúmulo de pedir uma libra da carne do inadimplente Antonio. Temor desnecessário, porém: a graça do livro é exatamente a de devolver o insulto como se se tratasse de elogio. Não há nada de execrável com o dinheiro, sugere Attali.
Essa tática bumerangue vem acompanhada de excelente bibliografia e uma escrita coloquial, necessárias sobretudo pela ambição de abarcar, em 600 páginas, de Abraão a Ariel Sharon. De lá para cá, os judeus teriam sido tão detestados quanto desejados, pois indispensáveis em seus préstimos. Prova disso é que, a cada vez que uma perseguição começava, eles eram vítimas das acusações mais estapafúrdias, como a de bebedores de sangue ou portadores da peste, mas nunca foram chamados de escroques. Tal injúria não conviria aos próprios inquisidores, que num dia perseguiam e no outro pediam crédito, entre eles inúmeros papas. Quando as capitais do mundo eram Babilônia ou Alexandria, lá estavam eles inventando o cheque, a letra de câmbio e outras técnicas de lastrear o esplendor. Sem o financiamento dos judeus conversos, Colombo não teria descoberto a América. Sem o apoio dos banqueiros Rothschild, tesoureiros da "Santa Aliança", Napoleão Bonaparte possivelmente não teria sido derrotado. Emprestar, mesmo que a juros elevadíssimos, era o passaporte para a tolerância: reis precisavam dos judeus para pagar suas guerras; comerciantes dependiam de seus créditos; até um modesto vizinho do vilarejo sabia a quem recorrer. O que nunca impediu, entretanto, violentas ondas de anti-semitismo nessa clientela. Em Alexandria elas eram endêmicas. Os reis espanhóis Fernando e Isabel, mais ela que ele, instigada por seu confessor dominicano, Torquemada, retribuíram a generosa contribuição de Isaac Abravanel, que lhes permitiu reconquistar Granada dos muçulmanos em 1492, com um decreto oferecendo aos judeus a conversão forçada ou a expulsão. Nessa eterna convivência de soslaio, a era de ouro para os judeus foi sob as asas do Islã. "Os judeus jamais conheceram melhor lugar para residir que esse Islã do século VIII", escreve o autor. Os de Damasco receberam os muçulmanos como libertadores. O califa Omar confiou-lhes a coleta de impostos e contou com a ajuda de guerreiros judeus para conquistar Alexandria. O califa Harun al-Rachid, o das Mil e Uma Noites, cercou-se de conselheiros judeus, enviando um deles como seu embaixador junto a Carlos Magno. Pode não estar no Corão, mas está na Bíblia: abominável é a pobreza, o juro é sinal da fertilidade da riqueza. Essa saudável perspectiva vem desde Salomão, o mesmo do Cântico dos Cânticos, que, ao inaugurar seu célebre Templo no século X a.C., inaugurava também um sistema de taxação e o primeiro banco com caixa-forte da história. Os juros (em hebraico, nechekh, que significa mordida) eram permitidos só fora da comunidade. Com o passar do tempo e a proibição, pela Igreja Católica, de que os judeus exercessem outros ofícios, o papel de prestamista não só foi o que lhes restou, como nunca os denegriu, ao menos do ponto de vista rabínico. Se a Igreja Católica elogiava a pobreza enquanto seus bispos acumulavam propriedades, dois textos fundamentais do judaísmo, o Talmude de Jerusalém e o da Babilônia, codificaram com comovente falta de hipocrisia as margens para taxas de juros. A paternidade do capitalismo, com licença, diz Attali, é dos judeus. O ponto alto do livro é o debate com o sociólogo alemão Max Weber, autor do célebre A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, para Attali uma "suma de ignorância e ingenuidade". Weber dizia que os judeus haviam inventado um "capitalismo de párias", de pura extorsão, em contraste com a ética da poupança, da produtividade e da racionalidade próprias do protestantismo. Com ironia, o autor argumenta que a "ética da poupança" weberiana, se levada ao ideal, redundaria na derrocada do capitalismo, que necessita de arrojo e risco, não de pacata mesquinharia. Dois judeus que nunca esconderam suas dificuldades com o dinheiro são citados: Karl Marx e Sigmund Freud. Marx, a matriz do comunismo, relacionou o judaísmo aos males capitalistas. Freud associou o dinheiro, simbolicamente, à matéria suja que se deve expelir. Attali os trata como "fantasias" equivocadas sobre o tema. A força da presença judaica, sugere o autor, se deve à sua qualidade nômade, cosmopolita, nos créditos concedidos, mas sobretudo na cultura disseminada. Como diz o adágio: a primeira geração funda bancos, a segunda os dirige e a terceira dá músicos, pintores e psicanalistas. É na identidade cultural, não territorial, que esse povo vem se perpetuando – demograficamente irrisório, culturalmente imponente. E se a globalização trará a multiplicação das diásporas, "o mosaico movediço de que será feito o mundo", o livro de Attali traz também uma lição sobre a necessidade urgente de demolir o muro dos preconceitos. Afinal, Rute, a bisavó do rei Davi, nem mesmo judia era.
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