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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Ásia

uma carta para a Índia

Querida Índia,
Nenhum país me desafiou tanto quanto você.
Nos últimos dias meus sentimentos jogaram um verdadeiro cabo de guerra. Não sei se te amo ou te odeio.
Sei que te devo outra oportunidade, mas por enquanto, preciso jogar o meu pranto, extrair o meu grito.
Vejo um deficiente ou pedinte sendo expulso como uma mosca e penso – você é desumana.
Vejo uma pessoa que não tem nada ajudar de alguma forma alguém que tem tudo e penso – você é humana.
Todo o mundo, do mais rico ao mais pobre, do mais culto ao mais ignorante, tem algo pra ensinar.
Todo dia me encanto com sua arte, arquitetura, história, cores, lendas, e crenças. Em seguida me invade uma tristeza ao ver tantos antídotos.
Jamais vi tantos contrastes.
Jamais vi um colorido tão vibrante.
Seu misticismo me lembra o sincretismo da minha Bahia. As diferenças me lembram o meu Brasil. Mas em tantos outros modos, você é tão diferente. Principalmente no quesito limpeza.
Vejo sorrisos no meio da indigência. Me animo. Aqui o povo tem sorriso.
Este é só o começo.
Depois de uns dias, vem a frustração com o povo. Seus funcionários e prestadores de serviço não sabem dizer não. Você sabe aonde é? Sei. Só que não. Tem esse prato? Tem. Só que não. Você sabe por que isso? Sei. Só que não.  Não sei se é pra agradar, questão de honra, ou talvez com sim você queira dizer não, como a balançadinha de cabeça que pode ser sim, não, talvez, claro que não, claro que sim.
Li que suicídios são comuns aqui. Mulheres se enforcam com seus xales, porque a filha casou com um rapaz de outra religião ou casta, jovens forçadas a casamentos indesejados, viúvas que são consideradas azarentas e má sorte até de olhar e vivem no ostracismo, mulheres abandonadas pelo marido que já não valem nada. Você, que tanto mostra a morte, fez o tabu do suicídio parecer amenizado, ao menos ao meu olho nu. Ao saber dessas histórias, carrego toneladas na cabeça e nos ombros.
Mas ao ver seus lagos repletos de flores de lótus, me sinto leve, te vejo delicada.
Saio de uma das construções mais belas que já vi e sou tocada por uma moça. Levanto meu olhar e vejo pescoço, braços e mãos com peles derretidas, cicatrizadas de queimaduras.  Um bebê de cabeça pendurada dorme nos seus braços. Este é o primeiro caso de queimadura de dote que testemunho, situação onde a mulher sofre um “acidente” na cozinha por que seu marido ou sogra querem mais dinheiro de um dote e tentam matá-la para consegui-lo. Se a mulher morrer, o marido pode casar novamente e ganhar outro dote; se a mulher sobreviver, ela viverá vergonhosamente na rua como um produto que já não serve mais. Pode ter sido outra queimadura qualquer. Mas neste momento, te odeio.
Querida Índia, a minha vontade é de chorar, gritar, tamanho meu choque, fúria, tristeza, pena… Mas há tanta gente me olhando, me tocando, pedindo dinheiro, vendendo um livro ou uma bijuteria barata. Você não me dá espaço físico nem mental pra demonstrar minha ira. Entro no carrinho de golfe que sai do Taj Mahal, abaixo a cabeça e respiro fundo.
Em todo lugar tem um mar de gente pedindo, mendigando, implorando, precisando, miséria, sujeira, nudez.
Querida Índia, minha trilha sonora pra você é Madredeus, que tanto ouvi pelas ruas do seu avivado Rajastão. Me dava uma paz e sincronizava com a coreografia dos corpos, mãos e olhares pedintes que se aproximavam de mim ou da minha janela.
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Parece que tudo tem uma camada espessa de poeira. Mesas, cadeiras, chãos, estantes, livros, portas e tapetes são cobertos por um pó escuro.
No final do dia, meu desejo é deixar a água do chuveiro não só tirar a pasta marrom do meu corpo, que adquiri só de andar pelas ruas, mas me reenergizar de tudo o que testemunhei.
No final de cada dia, me deito, relembro, medito e regurgito mentalmente sobre o que vi. São praticamente vômitos mentais sobre pessoas me encarando, pedindo, fazendo sinal de comer ou de dinheiro, criaturas esqueléticas com bebês dependurados, empurrões, suor, calor, me esquivando de vendedores e de merda de vaca, lixo, poluição, multidão, performances de pena, homens urinando na rua, cuspes, arrotos, flatulências, escarros em público… Tudo isso depois de ver um lindo templo, um palácio encantador, ouvir histórias envolventes de crenças e deuses.
Não sei se te amo ou te odeio. E quando odeio, me odeio por odiar. Por ser tão mimada, acostumada com o limpo e o confortável.
Estou mexida, movida, tocada, até o meu mais profundo âmago.
Sim, já ouvi o mantra milhares de vezes que Brahma é o criador, Vishnu o organizador e Shiva o destruidor, mas está tudo muito confuso nesta grande empreitada dos deuses.
Mas falando em deuses, me admira e até gosto do fato que aqui os deuses não precisam ser perfeitos para serem venerados, poderosos e influenciadores. Shiva fumava maconha, comia carne e vivia meio “young, wild and free” (refrão de uma musica que diz “jovem, selvagem e livre”. Brahma mentiu e foi punido pra sempre, por isso ninguém reza pra ele.
Vishnu parece mais interessante no meio de minha confusão mental. Ele parece ser mais calmo de todas as lendas que escutei até agora. (Mas ele deve ter aprontado alguma).
Sendo advogada do diabo, reconheço que o hinduísmo é uma religião, ou forma de viver, como você diz, mais liberal. Comparando com o islã, não é quase nada autoritária. Aparentemente qualquer um disposto a largar sua família para estudar, fazer ioga e meditar pode virar sadhu. Tem aqueles que só se vestem como tal e coletam trocados de turistas. Como saber a diferença? Por enquanto sigo fotografando.
Querida Índia, você me rendeu belas imagens. Obrigada.
O hinduísmo parece aceitar muitos, ou todos. Pelo visto, tem sadhus e gurus de diferentes cores, raças e nacionalidades. Me encolho. Me apequeno. Me julgo. Será que o hinduísmo aceita mais do que eu?
Querida Índia, você me invadiu.
Sinto falta de silêncio, espaço, reflexão – luxos que até então não valorizei o suficiente. Entrar no carro com ar condicionado, voltar para o quarto de hotel, por mais limpo que seja,  não me dão paz física nem mental. O jeito é encontrar paz no único lugar possível na Índia, creio eu. Dentro de si mesmo.
O Budismo nasceu na Índia, mas os ensinamentos dissiparam com a chegada violenta dos muçulmanos. Ok, isso rendeu lindas construções de palácios e mesquitas, mas foram invasões, no final das contas. Alguns ensinamentos e técnicas estão espalhadas em ashrams, templos ou casas. A história de Buda é envolvente. Mas os hindus depois alegaram que ele é uma encarnação do deus Vishnu, para não perder fieis. Me desaponto.
Querida Índia, seu cheiro é peculiar.
Uma mistura de cheiro de humanidade, o suor no calor, os pés descalços nas mesquitas, o curry, a cebola frita, chili, cuminho, gengibre, masala, chutney, vaca, chá, lixo apodrecendo, fumaça, esgotos fétidos, gasolina queimando, que de vez em quando é interrompido por um jasmim que corro pra enterrar o meu nariz, ou um incenso.
No final do dia sinto o cheiro da minha alfazema e da minha liberdade. Suspiro aliviada.
Pergunto a um e outro “você é feliz?” “Yes, madam (sim, senhora), não se preocupe, o povo aqui é feliz, não temos outra opção.”
O que você diz é que nós, ocidentais, olhamos para as pessoas que têm mais do que nós e pensamos “por que não tenho isso, por que não sou isso?”, já vocês, olham para os que tem menos e agradecem por não ser como eles, por ter o que têm. Ou seja, pobres infelizes, somos nós. Não sabemos o segredo da felicidade. Reflito.
Olhamos revistas e babamos por um corpo que não temos, olhamos uma bela casa na beira da praia e o olho arregala, escutamos na mesa de bar sobre a vida do outro e apoiamos o queixo na mão. Reflito mais um pouco. Será que você tem razão?
Querida Índia, você me desafiou.
Aqui a miséria é uma ferida aberta, ela é intensa, como um tapa na cara. Mesmo morando no Brasil, no dia a dia, a destituição é mais no jornal, na internet e na TV. Posso desligar. Aqui, não importa onde eu vá, ela está lá e vem até mim. Ela me toca fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Quero ajudar, mudar, mais como? Se eu der um trocado pra cada um que me pedir, é melhor fazer um orçamento à parte. Sinto-me culpada por não dar nada. Mas se eu der, me sentiria culpada por não ser o suficiente. A culpa vai e vem. Por eu ser privilegiada, por estar na posição de doadora e não de pedinte. Por ter o que dar. Por querer algo mais. Será que valorizei o que tenho o quanto deveria?
Mais do que culpada sinto-me confrontada, desafiada.
Querida Índia, você quer me derrubar, me tirar do prumo, me chacoalhar.
Me entrego então. Você ganhou.
Além da culpa, tem a raiva, pela injustiça, pela desigualdade. Eu tenho, outro não tem. A sua crença do carma diz que devo aceitar a minha realidade, pois mereço. Mas não sei se aceito.  E se aceito, espero por um entendimento melhor.
Apesar do calor que me faz suar por todo e qualquer poro, você me faz cobrir meu corpo. Calça, mangas, quero me esconder dos olhares ora curiosos, ora invasivos. Não sou de me vestir ousadamente, mas aqui preciso de mais camadas. Se tivesse um traje de bolha, usaria. Me cubro, pois é a forma de render-me ressentidamente. Seus homens não param de me encarar. Ainda bem que tenho Gu ao meu lado pra encará-los de volta, amenizando. A postura dos homens deveria mudar ou deveria me cobrir? Sabemos que não mudaram, então me protejo. Ah, se o desafio fosse só o de passar calor e suar profusamente.
Querida Índia, você também me encantou.
Gosto do som do OM, e incorporo-o. Conhecida como a primeira palavra do universo, ela engloba tudo – Brahma, Shiva e Vishnu, a vida, o mundo, natureza, o propósito. É a vibração da prece e da meditação.
Mas, querida Índia, muitas vezes não te compreendo.
Não vejo bom senso em banhar-se nas águas fétidas e podres do Ganges. Algumas gotas desta água são levadas ainda para debaixo da língua dos mortos. Mas quem sou eu pra ver nexo? Religião teve coerência alguma vez? Julgo-me outra vez. É só acreditar. Estou descrente? Ou menos crente?
Ver corpos sendo cremados na beira do Ganges foi intenso. Mal conseguia abrir os olhos por conta da fumaça. Um senhor me diz que mulheres não assistem à cerimônia, pois deve ter silêncio, e as mulheres sempre choram. Não sei se protesto ou se concordo. Em todo caso, aceno com a cabeça que sim. Vejo de cima, o que me da curiosidade de descer, mas ao mesmo tempo não quero chegar tão perto. Tenho medo de ver o corpo de um bebê. Aqui bebês não são cremados, o corpo no Ganges garante uma vaga no céu. Não sei se continuo observando a cremação ou se presto atenção na quantidade de lixo. Penso comigo mesma, ainda falta muito desapego em mim. Ou vocês são desapegados demais.
Você alega que não é o rio que é sujo, é a minha mente. Novamente não sei se protesto ou se concordo. Prefiro permanecer calada. Só sei que vai demorar pra entrar nesse rio, talvez só na próxima. Na próxima encarnação.
Reflito incessantemente. No catolicismo que cresci nosso criador é salvador e julgador. Mas está dentro de nós. Me apego a isso.
Seu sistema de castas, tido como ilegal, mas ainda praticado socialmente me dá verdadeiro asco. Esse fenômeno cultural, social e mental me parece desprezível. Vem a voz de meu pai “você tem que entender a antropologia das pessoas”. Me custa muito entender sua antropologia. Você diz que os Dalits, ou intocáveis, estão no fundo do poço da sociedade e do caminho espiritual. Quero saber em que manual está escrito esta injustiça.
Buda era um hindu de alta casta, Brahmin, que rejeitou esse sistema como um todo. Largou mulher e filho e saiu para buscar seu caminho através da meditação. As invasões muçulmanas tentaram erradicar o budismo, mas existem forças para revitalizá-lo na Índia, não só pelo guru e líder espiritual refugiado, Sua Santidade, o Dalai Lama, mas também pela casta baixa. Algum recado está sendo mandado. Querida Índia, receba-o.
Apesar de ouvir muito Om Shanti, e tentar ver além do material, sujo, e físico, que existe todo um “shanti” em você, me bloqueio. Shanti, a palavra em híndi para paz, é uma espécie em extinção por aqui. O barulho, as buzinas insuportáveis, o cheiro, a visão da sujeira, a invasão, o confronto – tudo me faz esquecer do “shanti” que ando buscando.
Se tantas pessoas vêm até você para limpeza, iluminação e busca, por que me sinto tão desassociada? Lembro da terapia. Será que tentamos preencher dilemas intermináveis? Vagos? Se tem uma coisa que não me sinto é vazia.
Querida Índia, apesar do desafio constante, dos inúmeros contrastes e contradições, não direi adeus, direi até a próxima.
Namaste.

56 THOUGHTS ON “UMA CARTA PARA A ÍNDIA

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